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Domingo, Setembro 1, 2024

Virgínia Woolf: Todo artista vai à guerra

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

Virginia pensou na cobra e no sapo depois de assistir ao congresso anual do Partido Trabalhista, em 1º de outubro. O clímax do congresso surgiu com a discussão quanto à Inglaterra preparar-se, ou não, para apoiar sanções econômicas à força, se Mussolini invadisse a Abissínia.

O líder do partido, George Lansbury, falando pela velha escola de socialistas internacionais, apoiou nominalmente a Liga das Nações e seu sistema de segurança coletiva, mas se opôs ao mesmo tempo a sanções à Itália, que a seu ver aumentariam as possibilidades de guerra.

Leonard Woolf descreveu-o como “um desses homens bons, sentimentais, confusos e ligeiramente insinceros que, em teoria, têm pretensões tão boas e na prática fazem tanto mal”, (in Parte 2)

A impossível arte de conciliar o desencanto com a guerra e o enlevo da criação

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Virginia divaga em casa

Como Virginia poderia conciliar seus instintos políticos com suas responsabilidades como artista? Leonard, com quem ela conversava enquanto atravessavam o brejo, disse que “a política deveria ficar separada da arte”. Naturalmente ela concordou, mas essa fórmula não dissolveu sua raiva nem seu desejo de integrar-se à luta contra o fascismo.

O congresso do Partido Trabalhista motivou-a a articular sua posição. Passou os três dias seguintes num estado de agitação febril ao rascunhar um capítulo de “A próxima guerra” (por fim intitulado Three Guineas).

Evidenciou-se como sua preocupação era relevante quando, em 3 de outubro, Mussolini de fato enviou suas tropas para a Abissínia. Rapidamente a Liga das Nações aprovou sanções econômicas que não tiveram nenhum efeito notável.

(…)

Mãos atadas ou braços cruzados?

Ativista da resistência inglesa e criança desabrigada, II Guerra Mundial
Ativista da resistência inglesa e criança desabrigada, II Guerra Mundial

Em 7 de março de 1936, encorajado pelo fracasso da Liga das Nações em deter Mussolini na Abissínia, Hitler avançou com suas tropas pela desmilitarizada Renânia, violando assim o tratado de paz de Versalhes; a França e a Inglaterra nada fizeram.

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Luta de classes está no cerne da violência

Rei George VI e Rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham, destruído após bombardeio alemão
Rei George VI e Rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham, destruído após bombardeio alemão

 

A infelicidade e a pobreza eram fomentadas pelo sistema de classes, no entender de Virginia, que se sentia pessoalmente responsável por isso, tendo em vista suas relações e sua renda pessoal.

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O franquismo se avulta

Guerra civil espanhola, no final dos anos 1930, em foto de Robert Capa
Guerra civil espanhola, no final dos anos 1930, em foto de Robert Capa

A situação na Europa se deteriorara ainda mais com a eclosão da guerra civil na Espanha, onde as tropas de Franco já lutavam contra as forças legalistas desde 16 de julho.

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A prática da arte aproxima o artista do humano

Virginia tinha acabado de escrever um artigo sobre o artista e a política, “The artist and politics”, para o jornal comunista Daily Worker, afirmando que os artistas, que em geral tentam manter-se fora dos debates políticos, deveriam renunciar a esse distanciamento em momentos de crise como aquele.

O interesse comum do artista pelas paixões humanas e a percepção dos sentimentos das massas necessariamente o atrairiam, a ele ou a ela, para a luta, “pois a prática da arte, longe de colocar o artista fora de contato com a sua espécie, aumenta ainda mais sua sensibilidade”.

Os artistas não poderiam ignorar as vozes que os chamavam para sair de seus estúdios e ateliês, devendo tornar-se politicamente ativos para garantir sua sobrevivência e a da própria arte.

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Frivolidades nunca saem de moda

A notícia de que o rei pretendia se casar com a considerada inadequada Mrs. Simpson produzia manchetes por toda parte, menos na Inglaterra purista. Quando o caso foi finalmente exposto, tornou-se foco central das atenções.

Virginia observou que “toda a Londres estava alegre e loquaz, não exatamente alegre, mas excitada”. O espetáculo absurdo, acrescentou Virginia, ocupava todo o espaço dos noticiários de jornais, nada sobre a Espanha, a Alemanha, a Rússia, todos cediam às fotos chamativas de Mrs. Simpson saindo de seu carro ou a revelações sobre sua bagagem.

Como observou Keith Feiling, biógrafo de Neville Chamberlain, “por dois meses preciosos, enquanto o genro do Duce, Ciano, estava em Berchtesgaden, enquanto a Alemanha assinava com o Japão pacto contra o Komintern e enquanto soldados fascistas entravam na Espanha”, o governo britânico preocupava-se exclusivamente com o desejo insignificante desse homem se casar com uma divorciada americana.

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Tudo indo e vindo e no entanto mudando

Jovem lê livro de história livraria de Londres, destruída após bombardeio
Jovem lê livro de história livraria de Londres, destruída após bombardeio

Virginia dedica-se ao livro “Os anos”, onde conta a história de uma família, particularmente da filha mais velha, Eleanor, que vive todo o prelúdio e eclosão da primeira guerra. Virginia se identifica com a personagem, coloca o drama íntimo que vive, com a guerra sobre a cabeça, no papel, usando uma precisão cirúrgica para transmitir o que sente.

Virginia comenta que, quando revisava o livro, havia colocado abaixo um matagal de detalhes para impedir que fizessem sombra sobre o padrão geral. “Quero manter o individual, e a impressão das coisas vindo e voltando e no entanto mudando. E é isto que é tão difícil: combinar os dois”.

No final do romance, Eleanor conclui que a vida resiste a todas as nossas tentativas de a resumir ou explicar, sendo composta por uma série infinita de acontecimentos e sensações casuais.

A impressão de recorrência e mudança vindo juntas, de passado e futuro interligados em outro plano qualquer, impregna as cenas finais. Publicou o livro em 15 de março de 1937.

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A guerra nem começou

Virgínia Woolf travestida de homem, como um príncipe da Abissínia, em meio ao seu grupo, Bloomsbury.
Virgínia Woolf travestida de homem, como um príncipe da Abissínia, em meio ao seu grupo, Bloomsbury.

Encerro aqui o encadeamento de fatos que o livro mostra. A narrativa vai muito além, até 1941, até a morte de Virginia. Mas a minha tese leiga — do suicídio como falta de esperança após viver duas guerras mundiais — não precisa de mais elementos.

A vida humana está imersa no oceano político, sob a mira da guerra. Muitos se iludem acreditando que estão com os pés secos e firmes em ilhas de neutralidade. Não existem, assim como as sereias.
A autora escreve em português do Brasil

Leia a Parte 1/3

Leia a Parte 2/3

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