João Ricardo, você é um economista atento à realidade europeia. Qual é sua opinião, em termos políticos, financeiros e económicos, sobre o actual estado da zona euro?
Os problemas da Zona do Euro remontam à sua concepção. Do ponto de vista geopolítico, o símbolo da união entre povos, materializado na moeda única, é muito forte. O problema é que, como nos ensinaram Robert Mundell e Ronald McKinnon (para ficar só em duas grandes referências), as condições para uma união monetária não se verificam desde o seu início. É preciso haver i) mobilidade dos fatores de produção (especialmente o trabalho, pois o capital é bem “móvel”), ii) supervisão bancária unificada e iii) mecanismos de transferências.
A mobilidade é muito baixa e o choque proveniente da crise de 2008 revelou que dificilmente famílias de países com desemprego alto mudam para países com um mercado de trabalho em melhores condições (ou que a mudança leva muito tempo). A falta da supervisão bancária unificada expôs a vulnerabilidade do setor financeiro europeu. Finalmente, se há algo que os europeus podem aprender com o Brasil e com os EUA (duas grandes áreas monetárias), é que a moeda única para funcionar precisa de transferências (especialmente no que tange o seguro-desemprego) de estados que se encontram em uma fase mais benéfica do ciclo econômico, para estados que se encontram num ambiente mais recessivo.
Sim, mas o Euro é uma realidade. Que conselhos você daria às autoridades europeias, neste momento, em termos de política monetária e política orçamental, numa óptica de continuidade do Euro como moeda única dos países que o acolhem?
Para se manter em uma união monetária, os países individualmente devem abdicar da política monetária e deixá-la a cargo de um banco central comum, o BCE no caso. De maneira extremamente acertada, o “whatever it takes” do Mário Draghi acalmou os mercados ao colocar o até então hesitante BCE numa posição mais firme quanto à garantia de liquidez na Zona do Euro.
Mas a crise de 2008 e seus desdobramentos nos lembraram que há limites para a eficácia da política monetária. O problema é que na Zona do Euro há países que hoje se encontram em situações fiscais delicadas sem espaço para estímulos fiscais. O que poderia haver é uma coordenação de estímulos nos países que estão em melhores condições, para poder acelerar o processo de ajustes externos por meio do diferencial de inflação, já que a taxa de câmbio nominal entre os países da Zona do Euro é fixa.
Como os países da Zona do Euro comercializam muito uns com os outros, esse estímulo teria desdobramentos positivos nas exportações dos países com mais dificuldades e assim a recuperação seria alicerçada em i) manutenção e até aumento dos estímulos monetários por parte do BCE e ii) estímulo fiscal por parte dos países que se encontram em melhores condições e iii) revisão da austeridade excessiva nos países com dificuldades.
A austeridade neste momento (por que austeridade é algo que os governos devem ter ao longo do tempo, mas não necessariamente a todo tempo) só poderia ser defendida se os países pudessem contrabalançar os efeitos recessivos da política fiscal com política monetária individual e ajuste no câmbio nominal. Não é o caso.
Mudemos de tema e falemos do “seu” Brasil. O que correu mal no segundo mandato de Dilma, independentemente do processo de impedimento subsequente? Isto é, qual a sua opinião sobre os primeiros meses (um ano?) de governo da Presidente?
O segundo mandato dela foi pautado por um entrave político. O partido da ex-Presidente (o PT) tinha um acordo com o partido do então Vice-Presidente (o PMDB) sobre a presidência da Câmara dos Deputados, mas ao invés de apoiar a candidatura de Eduardo Cunha, a ex-Presidente fez uma ofensiva e apoiou outro candidato para tentar diminuir o poder do PMDB. Não só a estratégia não funcionou como ela ganhou um inimigo bem articulado no Congresso, no pior momento possível.
O Brasil, desde o segundo trimestre de 2014, encontra-se em recessão, de acordo com o CODACE – Comitê da Datação de Ciclos Econômicos. O segundo mandato da Dilma iniciou-se em janeiro de 2015 e já no primeiro mês ocorreu esse episódio. Com os problemas fiscais em que o país se encontrava (e se encontra até hoje), havia a necessidade de mudanças que devem transitar pelo Congresso. Dilma nomeou um Ministro da Fazenda (Joaquim Levy) com a missão de ajustar as contas. Mas as barreiras políticas inabilitaram o ajuste e a recessão se aprofundou. O Ministro caiu, junto à popularidade da ex-Presidente e ao PIB.
E depois começou o processo de impedimento de Dilma. Sem lhe pedir que debata em excesso o assunto (até porque todo o processo foi atentamente seguido em Portugal), o que você acha sobre o facto de terem mantido os direitos políticos de Dilma, naquilo que aparentemente é uma violação clara dos vossos preceitos constitucionais? Acha que a esse facto também estará subjacente uma motivação política?
A Constituição do Brasil me parece bem clara: o impedimento é acompanhado da perda dos direitos políticos. Acredito que o que ocorreu no Senado, mesmo sob a supervisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), foi uma decisão errada. Deveriam ter votado ou pelo impedimento e a perda dos direitos ou pela manutenção da ex-Presidente. Uma combinação dos cenários não está prevista nas regras.
Mas você acha que houve motivação política nesse “erro”?
Acredito que sim, já que a motivação não pode ser jurídica.
E agora, o que vem você aconselhando que o actual governo brasileiro faça, em termos de política económica, nos seus artigos no Estado de São Paulo?
O Brasil encontra-se numa situação muito delicada. Em uma recessão maior que a registada durante a Grande Recessão e com inflação alta (mas caindo). Ao mesmo tempo, a trajetória da dívida pública é explosiva. Por isso, acredito que poderíamos utilizar uma combinação de i) reforma fiscal, ii) política monetária expansionista e iii) reformas estruturais.
No primeiro ponto, a Constituição de 1988 instaurou despesas com dinâmicas independentes da receita, numa tentativa de emular um tipo de estado de bem-estar social europeu. Não dá para os gastos crescerem sem que haja recursos. O orçamento brasileiro hoje é uma peça de ficção, pois quando não há receita prevista para fazer frente aos gastos estabelecidos pela Constituição, simplesmente aumentamos a projeção da receita.
A sociedade brasileira tem que debater qual é o Estado que quer, quanto custa esse Estado e se está disposta a pagar por ele, lembrando que existem restrições orçamentárias. Ademais, existem gastos como com a saúde e educação que devem ser preservados, para não prejudicar o nosso conturbado desenvolvimento. Além disso, a nossa Previdência deve ser reformada. Não dá para nos aposentarmos com 55 anos, em média.
Caso as reformas sejam bem feitas (dá para fazê-las sem cortar programas sociais, pois o principal problema é a dinâmica do crescimento dos gastos, mais até do que o nível), o ciclo de afrouxamento monetário iniciado na última reunião do Banco Central do Brasil poderia ser mais intenso e mais rápido. Há quem estime que a taxa de juros nominal possa voltar à casa de um dígito. Essas medidas trariam certo alívio e poderíamos começar o debate sobre nossos tributos e nosso mercado de trabalho.
Paralelamente, a taxa de câmbio poderia se depreciar (embora não tenhamos uma tendência clara, já que um excesso de confiança com o Brasil poderia trocar fluxos atrás de renda fixa por investimento estrangeiro direto e fluxo de portfólio no mercado acionista), estimulando as exportações líquidas. Mas a verdade é que sem uma reforma política de verdade, ficará difícil sair da chamada “armadilha da renda média”.
Você vai fazer a defesa intermédia da sua tese de doutoramento, na faculdade da economia da Universidade do Porto, onde nos conhecemos. Quer explicar, de forma inteligível para o comum dos mortais, em que consiste o seu trabalho de investigação?
Eu estudo a (má) alocação de recursos e a dinâmica dos ciclos de negócio, com foco especial na Grande Recessão no México e na recente depressão brasileira. Basicamente, temos quatro grandes decisões macroeconômicas: quanto produzir, quanto trabalhar, quanto investir e como dividir os recursos. Se temos quatro grandes decisões, temos escolhas ótimas para elas. Quando confrontamos com a realidade, verificamos que os dados divergem do paradigma eficiente (dos mercados perfeitamente competitivos).
Eu busco identificar qual é a distorção relevante e como ela se manifesta na economia. Por exemplo, no México, acredito que as decisões de produção são distorcidas pela participação de bens intermediários importados e a depreciação da taxa de câmbio real ajuda a explicar a lenta recuperação durante a Grande Recessão. Já no caso do Brasil, as minhas estimativas corroboram para a ideia de que i) é um evento eminentemente doméstico e ii) embora o estímulo proveniente do crédito do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Económico e Social) aumente a produtividade da economia num primeiro momento, pouco mais de um ano após a concessão seu efeito é inverso e está altamente correlacionado com as distorções relevantes na economia brasileira que explicam a depressão.
As respostas do entrevistado foram dadas em português do Brasil