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João de Sousa

Domingo, Setembro 1, 2024

Em Três Actos

Eduardo Águaboa
Eduardo Águaboa
Escritor, Ensaísta, Comentador político especializado em ideias gerais

coracao

Ao passar uma noite no Bar dos Canalhas e verificando a multiplicidade de actividades lúdicas que passavam pelo palco interpretadas por gente amadora, resolveu falar com a gerência, pedindo-lhe se podia levar a cena, uma peça que trazia na cabeça. Algo sobre um coração que andava armado em parvo até que num dia de chuva mudou. Uma história complexa e longa que levou a gerência a lembrar-lhe que nas «noites livres» era preciso dar espaço a muitos que se limitavam, a declamar um poema, ou a usar um instrumento musical para UMA interpretação, etc, etc., por aí, mas nunca ocupar o palco para além de – no máximo – 10 minutos.
-Se conseguir escrever e levar o ou os intérpretes a representarem dentro desse tempo, tudo bem… queira ter a bondade de preparar a sua peça.

Francisco concordou e sem pensar bem reservou o seu «tempo de antena» para a quarta-feira seguinte.

Passou noites em branco para escrever a sua originalidade em três actos, tinha se ser em três actos, que se despachassem nos tais dez minutos.
O actores, foi fácil, conhecia uns amigos com alguma habilidade para a representação.
E assim passou os dias e as noites a fazer investigações pessoais sobre as porras mais improváveis. Tinha de surpreender. Até podia acontecer que estivesse por lá, nessa noite, algum agente, algum «caça talentos» que lhe reconhecesse o mérito que ele pensava ter.
Tinha de elaborar algo de diferente.
Em três actos.
Em dez minutos!!!

Chegou a noite da apresentação e apenas com um dia de ensaios em sua casa, foi anunciada a peça em três actos, de Kiko Dantas: DAR LIBERDADE À VONTADE!

I ACTO

Uma mulher está sentada na beira de uma cama, a manusear um álbum de fotografias.
Levanta-se, vai junto ao espelho e diz-lhe:
– Nesta vida amarga, comigo o erro foi partir de casa cedo demais.

Entra no quarto um homem alto e elegante que a enlaça e conforta-a:
– Se ao menos, minha querida amiga, o seu marido tivesse sido menos medroso nos caminhos da vossa vida.
– É verdade, era muito lento…atrasou-me o salto no mundo, o meu marido, o Joaquim Manco!!!

Os actores deram as mãos e inclinaram-se perante o público.

II ACTO

Numa sala apinhada de amigos e amigas, o anfitrião, serviu bebidas a todos e finda a tarefa, antes que começassem a questioná-lo fosse sobre o que fosse, desejou um bom fim de semana para todos. Para melhor de se fazer ouvir, pulou para cima de uma cadeira.

– Agora ide. Eu fico por aqui, amarrado a coisas de um pensador arrependido, ou a caminho disso.
– Não copos.
– Não nada.
– Nada, não!
– Ganhei o hábito de divagar por um boletim imaginário de lindo aspecto gráfico e que tem umas ideias deliciosas, como a de Confúcio que, nesse tal meu imaginário, às tantas diz a quem não parava de o questionar

“Porra, não vedes que estou a almoçar?”

Amo Confúcio.
Faz-me sentir mal.

O actor fez uma vénia e saiu de palco.

III ACTO

Agarrado ao computador o jovem pretendente a escritor, desenhava nele palavras que lia em alta voz:
– Às vezes gostava que o pc não recolhesse tudo o que escrevo, o que estes dedos vadios e maçudos lhe vão depositando, como se fossem chicotadas sorridentes…

…devia, quando insisto em deixar que os corações madruguem onde querem, olhar para a coisa de modo reticente, esquivar-se da mesa e pirar-se… aproveitar a janela que, como está sempre aberta, mostrar-lhe-á um pouco de telhado o Céu e a rua, onde poderá achar descanso e lambuzar-se com pedacinhos de bolos que espalho diariamente à passarada.

O actor fez um manguito para o público.
E depois outro.
Ainda outro e saiu de cena.
A plateia, não resistiu, levantou-se e entrou em êxtase.
– BRAVOOOOOOO….BRAVOOOOOOO…..BRAVOOOOOOOO…o público em delírio queria bis….e bis…e bis….

Ao contrário das anteriores balelas pungentes, os «críticos» consideraram aqueles manguitos uma Obra de enorme envergadura artística

E o artista teve de regressar ao palco seis vezes, para outros tantos manguitos, enquanto o maralhal não se cansava de assobiar, aplaudir, e gritar BRAVOOOOO….BRAVOOOOOOOO.

Contado o tempo de agradecimentos a coisa foi muito para além dos 10 minutos que duraram os três actos.

Francisquinho assistiu ao espectáculo, encostado a um canto da sala com uma expressão dolorida e martirizada.

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