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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

É possível expurgar o empreendedorismo do seio do neoliberalismo?

Rogério V. Pereira
Rogério V. Pereira
Estudou Engenharia Química no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. Começou a trabalhar como Técnico de Organização Industrial e terminou no topo da carreira, como sénior manager, nas áreas da consultoria em organização e gestão.

cimeira-ibero-americana-2016

Na última sessão da XXV Cimeira Iberoamericana, Lina (da Colômbia) e Alejo (de Cuba) partilham a leitura pública do “Manifiesto – Iberoamérica Emprende Desde La Universidad”. Traduzo, a dado passo, a passagem:

«Estamos empenhados num empreendedorismo inclusivo, sustentável e social, numa equipa de empreendedorismo, longe dos modelos individualistas e egocêntricos do passado. O velho estereótipo do empresário solitário contra as adversidades do mundo deixou de ser válido. O Empreendedorismo no século XXI se faz em equipas multidisciplinares, multiculturais e intergeracionais.»
(texto do “Manifiesto“)

web-summitNão sei se todos ou apenas alguns dos 50 mil jovens que irão “invadir” Lisboa, participar no Web Summit e intervir em centenas de conferências, leram o “Manifiesto”. Não sei, mas é muito provável que os 22 jovens que subscreveram o documento não estejam isolados e que aquele escrito traduza um sentir alargado. Não sei.

Eu li. Na parte citada, parece generoso o propósito de reenquadrar o conceito de empreendedorismo, retirando-o da ideologia neoliberal que tenho vindo a denunciar e percebo porque no mesmo documento se refere a necessidade de ir à escola reenquadrar tal ensino na linha defendida pelo “Manifiesto”.
(para ouvir, colocar o vídeo a partir de 2h 27min) .

É que o conceito antigo já por lá anda e é necessário de lá expurgá-lo.

Santana Castilho escreveu no passado dia 2 no Público: «Pelo Expresso de 22 de Outubro, fiquei a saber que está criada uma “fábrica de líderes” (sic) em Cascais. A matéria-prima para a fabricação são 10 mil alunos de 50 escolas de Cascais. Diz a notícia que se trata do “maior programa municipal de empreendedorismo nas escolas” (…) que quer “despertar o espírito empreendedor dos mais novos, dando-lhes ferramentas para encararem a criação de negócio próprio”. (…) Em matéria de parceiros, Cascais tem um de peso: a Junior Achievement Portugal, aquela associação que foi acusada por um grupo de mães e pais de andar a “doutrinar crianças a ver a família como unidade de consumo e produção”. »

Certamente por esse país fora proliferam iniciativas assim, incentivadas por Câmaras Municipais que, com a “municipalização do ensino”, cada vez se sentem com maior autoridade em influenciar os conteúdos educativos.

Oeiras não escapa, notícias recentes dão conta de que «o Município de Oeiras vai promover a 2ª edição deste projecto no ano lectivo de 2016/2017. Nesta segunda edição pretende-se que participem 500 alunos do 1º ciclo do ensino básico e 500 alunos do ensino secundário e profissional. Os professores das diferentes escolas que irão implementar e dinamizar o projecto iniciam agora, em Outubro, a formação que os dotará das ferramentas necessárias à implementação do projecto em contexto de sala de aula. Em termos metodológicos, no 1º ciclo do ensino básico os alunos irão descobrir a temática do empreendedorismo, através da personagem Gaspar, que é um rapaz muito empreendedor e que levará os alunos numa grande aventura pelo concelho de Oeiras.» Em matéria de parceiros o Município de Oeiras segue passos similares a Cascais, mas escolhe a GesEntrepreneur.

Não será fácil reverter a situação para a linha que foi apresentada na XXV Cimeira, até porque, por cá, reina a moda da “municipalização da educação”, a escola não detém uma verdadeira autonomia e na maior parte dos municípios não estão criados os Conselhos Municipais de Educação o que só por si dá condições para que o percurso de Cascais e Oeiras continue sem percalços.

Diria que, estes municípios, irão até retirar dividendos da dimensão do Web Summit e usá-los como suporte e promoção dos seus projectos…

Sobre a ideologia dominante, volto a citar um texto editado há dois anos:

«No discurso do empreendedorismo, o empreendedor é o motor da economia, um agente de transformação, dentro e fora das organizações. É o indivíduo adequado para a competitividade, ajustado ao novo regime de acumulação capitalista, portador de qualidades como flexibilidade, independência, inovação, aquele que assume riscos e busca realizar os seus sonhos de ascensão e mobilidade social. Com este conjunto de argumentações, o discurso empreendedor movimenta-se à procura de adesão às suas orientações, sob a premissa de que o trabalhador deve converter-se em empreendedor, a fim de enfrentar as novas demandas laborais do mundo globalizado e a complexa situação de desemprego.

De acordo com a proposta empreendedora, os que vivem do trabalho poderão garantir a sua posição em um mercado competitivo libertando-se das limitações do paradigma tradicional do trabalho formal. Cabe ressaltar que suas proposições destinam-se a todo e qualquer personagem presente no mundo do mercado, e ultimamente direccionado para os espaços educativos. O discurso empreendedor sustenta-se na perspectiva neoliberal de que a saída para a desocupação e o desemprego está no micro empreendimento e, em decorrência, na preparação e educação dos jovens para assumirem a condição de potenciais e futuros empreendedores”
(…)
A educação empreendedora, nos moldes como se estrutura actualmente, direcciona o estudante para aderir aos princípios da economia, sem uma visão critica e autónoma. A educação empreendedora disciplinariza e normatiza um tipo de comportamento: o você S.A.”
(…)
O que se vê são estratégias de se passar aos estudantes a ideia da necessidade de desenvolverem em si mesmos os sonhos possíveis, independente dos cenários e das responsabilidades de políticas públicas que suportem o agir empreendedor.

No campo socioeconômico, essa crise explicita-se: na hegemonia do capital especulativo, fruto da expansão e intensificação do processo de internacionalização do capital; no desemprego estrutural, resultado do processo de reestruturação produtiva e da implementação de políticas de desregulamentação do mercado de trabalho; e no monopólio científico-tecnológico obtido pelas economias centrais capitalistas e corporações transnacionais. No campo ético-político, a crise expressa-se na naturalização da exclusão e no apelo ao individualismo. Esses factores implicaram uma crescente concentração do capital e um crescimento sem precedentes da exclusão social na ordem mundial, gerando, como indica Sennet (2008), a corrosão do carácter.

É possível sintetizar o movimento do mercado em duas palavras: competitividade e flexibilização. Para elas voltam-se todos os esforços de indivíduos, sociedades, Estados e governos, especialmente dos que se inscrevem na periferia do capitalismo mundial, fundamentando como indica Ehrenberg (2010), o novo culto da performance. Este ideário neoliberal do ponto de vista, por exemplo, dos organismos internacionais de educação é reforçado pela abordagem empreendedora marcada pela competitividade.

A economia deve ser supostamente regida pelas leis do mercado. O Estado tem de ser mínimo na regulação do capital e na defesa das instituições e dos bens públicos, mas interventor quando cuida dos interesses do capital, como na qualificação da mão-de-obra, na flexibilização e desregulamentação do mercado de trabalho, na defesa das patentes estrangeiras e na sustentação do mercado financeiro. O Estado deve actuar, ainda, como parceiro das grandes corporações internacionais, estabelecendo vantagens comparativas em relação a outros países, a exemplo dos incentivos fiscais e financiamentos, para atrair o capital produtivo externo, como se nota nas grandes concentrações de mão-de-obra mundiais.

Novos métodos e técnicas de organização e gestão do processo produtivo, associados à desregulamentação do mercado de trabalho resultaram em uma drástica redução nos níveis de emprego e em constantes tensões nas relações de trabalho, fruto da intensidade com a qual o trabalhador é explorado, da ameaça constante que sofre de perda do emprego, da terceirização, de seu trabalho, além do aumento de trabalhadores não integrados ao sistema produtivo.

O discurso do empreendedorismo propõe-se ser a solução para que Estados e trabalhadores se ajustem às exigências de competitividade da globalização económica. Apresenta-se como indutor da prosperidade económica, como motor do desenvolvimento económico e como alternativa ao desemprego.
(…)

in “O espírito do capitalismo e a cultura do empreendedorismo educação e ideologia”
/ Otávio Pedro Alves de Lima Júnior. Belo Horizonte, 2011″

Artigo publicado inicialmente no blog Conversa Avinagrada

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores.

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