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João de Sousa

Quarta-feira, Dezembro 25, 2024

Um novo paradigma para o socialismo 4

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Novo paradigma - PS

O académico e investigador expõe de forma muito clara o seu pensamento acerca do que poderão, e no seu entender deverão, ser as linhas orientadoras de um novo paradigma à esquerda, apto a iluminar o caminho e enfrentar os desafios complexos de um mundo onde impera a instabilidade e no qual “uma centelha pode incendiar toda a pradaria”.

Em foco estão, em particular, a assim designada “terceira via” e o aggiornamento do socialismo democrático assim como as evoluções registadas na esfera pública deliberativa.

João de Sousa


Contributo para um debate à esquerda – 4

por João de Almeida Santos

II. UM NOVO PARADIGMA EM 14 PONTOS

 As tentativas de aggiornamento do socialismo democrático aconteceram em 1956, com o Labour, em 1959, em Bad Godesberg, com o SPD, que se libertou definitivamente da chancela marxista (ética cristã, humanismo e filosofia clássica alemã – passaram a ser os seus novos pilares ideais), assumindo-se como partido do povo (não de classe); mais tarde, em 1984, em Essen, inicia um novo processo de reconfiguração da sua identidade relativamente ao optimismo industrialista e à recusa da tradição marxista, que iria desembocar no Congresso de Berlim, em 1989.

Também na Inglaterra, ao mesmo tempo (1985), acontecia um novo e complexo processo de redefinição da identidade política e ideal do Labour, de Neil Kinnock a John Smith, a Tony Blair (entre 1985 e 1997), procurando responder às novas exigências dos “catch all parties” (partidos sem “classe gardée”, profissionalizados, interclassistas, de baixa tensão ideológica) que começavam a dominar a cena, reconfigurando o partido à medida da nova democracia do público.

Ou seja, verificou-se uma espécie de “laicização” integral da narrativa política do Labour. Acabaram com a marxista Cláusula 4 e com o enorme poder dos sindicatos, universalizando o voto individual (acabando, na era de John Smith, com o voto colectivo dos sindicatos), passaram a olhar para a cidadania como a base de uma stakeholder society, onde cada cidadão era considerado como um acionista ou co-interessado, titular de interesses e de direitos, de dividendos sociais (“strategic goods as education, jobs, income and wealth” – Stuart White), mas também de deveres e responsabilidades sociais. E esta, apesar de pouco apreciada em certos sectores da social-democracia (incluída a portuguesa), foi uma revolução na óptica de uma esquerda que sempre proclamou o primado dos direitos, liberdades e garantias, deixando na penumbra a ideia de dever e de responsabilidade individual. “No rights without responsabilities!”, viria a dizer Anthony Giddens.

A viragem do Labour, que ficaria conhecida como “Terceira Via”, levaria Blair ao Poder por muito tempo, sendo certo que a sua queda foi devida mais à aliança com os Estados Unidos do que à política interna.

Refiro o caso do New Labour apenas para sublinhar que, em certos momentos, mais do que afunilar a política em cardápios financeiros, económicos e fiscais como programas de governo, certamente importantíssimos, é necessário também interpretar os tempos, dando-lhes respostas ético-políticas, culturais e civilizacionais. Blair centrou-se na identidade do Partido e nas exigências de comunicação com os ingleses. Hoje, está a tornar-se cada vez mais necessário prosseguir na busca de novas âncoras que enrobusteçam socialmente a identidade ético-política dos socialistas.

Já formulei os principais pontos de ruptura com que nos confrontamos hoje. E é claro que o modelo do New Labour (ou o Neue Mitte, de Schroeder) está, também ele, em parte, ultrapassado, porque a mudança já é mais profunda. Traduzi-la-ia, pois, em catorze pontos, para glosar a famosa agenda de Wilson:

  1. afirmação plena do indivíduo/cidadão/consumidor/prosumercomo centro complexo de pertenças e de convergência de uma lógica pós-organizacional, pós-ideológica, pós-representativa, mas também pós-comunitária, que não anula, mas traduz, reconverte e projecta para uma nova dialéctica, todavia, as formas organizacionais, ideológicas, representativas e comunitárias;
  2. relativização do poder das grandes organizações, na política e na comunicação, apesar da persistência crítica, na economia, de desigualdade estruturalentre o poder da grande empresa – muitas vezes a funcionar em registo de monopólio, de oligopólio ou de cartel  – e os consumidores singulares, o que representa um grave handicap para a cidadania (veja-se a barreira intranponível dos Call Centers das grandes empresas, por exemplo no sector das comunicações, quando um problema mais difícil se põe ao consumidor);
  3. mobilidade e rapidez crescente na gestão dos processos políticos, comunicacionais, financeiros e económicos;
  4. acesso generalizado a plataformas de informação e comunicação móveis altamente sofisticadas e possuidoras de um fortíssimo potencial de estruturação/desestruturação das relações sociais e humanas, em todas as suas dimensões;
  5. quebra drástica no valor tendencial da intermediação política e comunicacional, ou seja, da representação convencional;
  6. mutação profunda no próprio conceito de poder, com a emergência do poder diluído;
  7. centralidade da ética da responsabilidadena definição da ética pública, com remissão da ética da convicção para a esfera privada da sociedade civil, lugar onde se constrói a hegemonia ético-política e cultural;
  8. nova hegemoniacentrada numa visão ético-política do mundo estruturada a partir de um cosmopolitismo crítico que funcione como sólida cartografia cognitiva para o cidadão;
  9. reequilíbrio da relação entre direitos, liberdades e garantiasdeveres e responsabilidades“no rights without responsabilities” (A. Giddens);
  10. reequilíbrio entre liberdade e igualdadeque assente numa revalorização do indivíduo singular e na sua relação com os princípios acima referidos: nem igualitarismo nem darwinismo social;
  11. promoção das ideias de democracia e de cidadania supranacionais,articuladas com uma visão cosmopolítica e crítica do mundo;
  12. uma nova relação entre cultura e civilização,fazendo da cultura a âncora da civilização e colocando na estratégia política do progresso civilizacional a centralidade do indivíduo singular como sujeito complexo, informado e culto capaz de intervir criticamente como decisor nas causas de dimensão pública; esta relação está a tornar-se cada vez mais necessária visto o crescimento exponencial das TICs e das redes sociais com fortíssima capacidade invasiva sobre a vida quotidiana e as relações sociais, do plano público ao próprio plano privado e da intimidade;
  13. esta conexão pode limitar com eficácia os efeitos disruptivos de meras políticas aleatórias e fracturantes de causas civilizacionais como marcas definidoras de uma identidade política, sem cartografia cognitiva e ideal e subsidiárias do “políticamente correcto”;
  14. o progresso civilizacional não poderá, portanto, prescindir da centralidade dada à cultura e ao saber, no momento em que a ciência e a tecnologia já são forças produtivas dominantes e fundamentais e em que a generalidade dos cidadãos já está dotada de instrumentos ágeis (as TICs) de participação e de acesso à esfera pública.

III. UMA NOVA ESFERA PÚBLICA DELIBERATIVA

Papel decisivo nestas profundas transformações está a ser desempenhado pela Rede, principal responsável pela mudança de paradigma. Deixou de ser possível continuar a pensar exclusivamente em termos de (a) legitimidade de mandato, ou seja, de estabilidade temporal da legitimidade da representação política, (b) comunicação instrumental (spinning e derivados) e (c) estruturação orgânica da política. Acresce que a evolução da globalização, em grande parte também devida à Rede, sobretudo a globalização de processos, veio introduzir, como já referi, novas “constituencies”, a juntar à da cidadania nacional, ou seja, a dos credores e a da União (no caso da Europa). Trata-se, então, não só de uma “cidadania” politicamente mais alargada, mas também de fundamentos constituintes e legitimadores do poder. Acresce que a reserva de decisão de outrora foi também superada por novas exigências de cidadania, ou seja, a decisão política e institucional já não pode, em caso algum, prescindir de integrar, como variável informal, no processo decisional e institucional, uma nova esfera pública deliberativa sob pena de ver recorrentemente deslegitimadas as próprias decisões institucionais e, consequentemente, o próprio poder. Trata-se de uma política deliberativa a crescer cada vez mais no espaço reticular, mas também nos media convencionais, embora sob formas diferentes.

Estas profundas mudanças ou são metabolizadas pelas formações políticas tradicionais, designadamente em termos de (a) selecção das estruturas dirigentes, através da incorporação da cidadania e de (b) qualidade das propostas políticas e do seu próprio processo de construção, (c) reconhecimento dos factores globais que já integram o exercício do poder – ou, então, estão condenadas a ser substituídas rapidamente por outras formações políticas mais em sintonia com os tempos, as  novas exigências e os novos desafios. Já não basta a cosmética ou o spin doctoring. Estes eram amigos das velhas organizações. A experiência italiana dos Clubes Forza Italia (levada a cabo por Berlusconi) deveria, para este efeito, ser repensada à esquerda e em termos de funcionamento da Rede e em rede. Estes Clubes (chegaram a ser 15.000) eram organizações autónomas da sociedade civil ligadas ao Forza Italia por protocolos e dinamizavam territorialmente as relações interpessoais. Organizações deste tipo poderiam dar voz ao “poder diluído”, polarizando e organizando o consenso, ser mobilizadoras nas primárias abertas, motores eficazes de uma política deliberativa e decisivas nas eleições. A fórmula usada pelo MoVimento5Stelle, os famosos MeetUp (“grupos locais do movimento ligados entre si por uma específica plataforma online”) [1], é também interessante para reflectir sobre a forma de organizar e dar expressão ao poder diluído. Mas para isso os partidos deverão “reformatar-se” à medida de um novo conceito de poder e dos novos fluxos políticos e comunicacionais que já correm com vigor no espaço público.

[1] Biorcio e Natale (2013). Politica a 5 Stelle. Milano: Feltrinelli, p. 14.

Nova versão, actualizada. Título e Apresentação em espanhol. Texto em língua Portuguesa. Publicado no Blog sobre comunicación, contenidos y redes de Tendencias21. Dezembro de 2016

Nota de edição

O primeiros artigos desta tese foram publicado nos dias antriores:

O último artigo que completa estas teses será publicado dia 7 de Janeiro de 2017.

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