19 de janeiro de 1982. Como sempre, amanheci tarde, com o radiorrelógio na cabeceira da cama já ligado. Demorei a levantar, antes conversei com a minha barriga de seis meses. Estava amando, grávida, recém-formada na faculdade, não tinha nem precisava de planos: meu tempo era o da espera.
Não esperava a notícia da Elis Regina morta. Fragmentos da memória me dizem que ela passara a madrugada se desentendendo com o novo namorado, o advogado Samuel Mc Dowell. Por telefone. Durante horas.
Imagino que Elis, não à toa apelidada de “pimentinha”, brigava e dava um gole em uma bebida, ou cheirava um pouco de cocaína, sem contabilizar o quanto estava se intoxicando. Também se intoxicava com a briga. A mistura seria fatal, comprovou-se depois.
Para amigos como Roberto Oliveira, dias antes, confessou que andava muito feliz, apaixonada. E perguntava (conforme matéria da Folha de São Paulo, artigo de Ricardo Kotcho do dia 20 de janeiro):
“Como é que faço para isso não acabar nunca mais?”
Elis Regina já era eterna aos 36 anos, apesar disso, experimentava o medo de que tudo se acabasse. De certa forma, em primeira análise, o medo pareceu justificado porque o namoro acabou, os contratos profissionais acabaram, a felicidade anunciada publicamente acabou.
Tudo estava feito. Magnificamente bem feito. Mas precisava ter morrido tão cedo?
Não quero resvalar para o lugar comum, mas os medos de Elis (ela tinha alguns entre os mais prosaicos, que revelava ao mundo com uma honestidade espetacular, colocando-se sem cerimônia, como era seu jeito, ao lado do mais comum dos mortais que brigava, por exemplo, com o ponteiro da balança) talvez a tenham levado justamente ao destino que temia.
Elis peitou a ditadura, peitou poderosos, gravadoras, críticos, rivais, desafetos…
Brigou com unhas e dentes por muitas causas e coisas que defendia ou desejava, mas, como um Édipo que não quer matar o pai e por isso foge da profecia do oráculo, perdeu o que mais temia perder no dia em que morreu: a felicidade efêmera daquele momento.
Se era efêmera, como sabemos que são todos os encontros nessa vida, ainda que durem 100 anos, que utilidade há em temer o fim antes que chegue?
Há uma parábola indiana curiosa a esse respeito.
A morte cruzou com um viajante em uma estrada e contou que estava indo para uma cidade próxima buscar 100 almas, dos que morreriam contaminados pela praga.
O tempo passou. O viajante voltou à mesma estrada e reencontrou a morte. Afrontou-a:
“Você me disse que iria buscar apenas cem almas e morreram mais de mil pessoas, por que mentiu?”
A morte diz que não mentiu, sua missão era resgatar aqueles 100 vitimados pela praga, os demais morreram de medo nos seus braços.
Janeiro de 2017
Voltando a Elis, sua última gravação foi em dezembro de 1981, para um programa de TV dirigido justamente por Roberto Oliveira, o amigo confidente. Cantou “Me deixas louca”, a versão brasileira de Paulo Coelho (o escritor mundialmente famoso, ex-parceiro de Raul Seixas) para música de Armando Manzanero.
Quantas vezes cantei essa música junto com a Elis como se fosse “eu” a louca de amor pelo amado, pela vida? No dia 19 de março do mesmo ano, não cantei, mas enlouqueci de amor por uma nova criatura: minha filha nasceu. Dois dias antes, em 17 de março, Elis havia sido novamente lembrada pela mídia e pelos fãs, que a homenagearam pela data do aniversário: completaria 37 anos.
A sua morte já havia sido autopsiada pela medicina: parada cardíaca causada por ingestão de álcool e tóxicos. Nem por isso, os brasileiros a assimilaram.
Descreio completamente da tese de suicídio. Rejeito ainda mais a crítica dos moralistas, que atribuem a morte precoce ao uso desregrado das drogas. Nada disso. Foi coração partido por medo do indizível. Do inevitável.
Também morro muitas vezes por causa do mesmo medo, um dia a morte será física, como a dela. Até lá, sigo na luta, amando e perdendo, como ela e como todos os brasileiros.
A autora escreve em português do Brasil