Por um lado, a notícia de um estudo do economista e professor da Nova School of Business and Economics Pedro Portugal, publicado pelo Banco de Portugal, no qual se critica fortemente e se propõe a drástica limitação da possibilidade de extensão, por via de Portaria do Ministério do Trabalho, dos contratos colectivos de trabalho (assinados entre associações sindicais e associações patronais, e que em princípio apenas se aplicariam aos trabalhadores e empresas naquelas filiados) a todos os trabalhadores e todas as empresas do respectivo sector. Isto, sob o argumento de que tal mecanismo de extensão – o qual, designadamente, impõe a todas as empresas o respeito pelas condições mínimas, desde logo salariais, estabelecido no referido Contrato Colectivo – levaria à destruição do emprego.
Por outro lado, um artigo sobre as custas judiciais da autoria de Nuno Garoupa, um dos conhecidos adeptos da teoria da chamada “Análise Económica do Direito”, em que se ataca a ideia do abaixamento das nossas astronómicas custas judiciais, argumentando que uma tal descida não melhoraria ou facilitaria o efectivo acesso dos cidadãos à Justiça.
A aparência de cientificidade do ideário neo-liberal
Trata-se de duas ideias falhas de fundamento mas perigosas porque visam conferir uma aparência de cientificidade àquilo que não passa afinal de reafirmações e recauchutagens do ideário neo-liberal, o qual busca a máxima individualização das relações de trabalho (pois bem sabe que aí a assimetria por que elas se caracterizam se acentuará ainda mais a favor do empregador), nega o colectivo e propaga que “o bem estar social mede-se pela agregação do bem estar dos indivíduos”.
Bem como denega a Justiça e a Saúde como direitos fundamentais, considerando-as meras “utilidades” que deverão ser a analisadas na pura lógica da “avaliação custo/benefício”, fazendo com que, se os custos directos para os cidadãos (por exemplo, as taxas e custas nos Tribunais ou as taxas moderadoras e contas dos hospitais) já não cobrem o custo marginal de cada acção judicial ou de cada intervenção hospitalar, então há que tomar medidas.
E tais medidas precisamente passam por despir as pessoas da sua qualidade e capacidade de cidadãos, e por procurar transformá-las em “utilizadores” ou meros “utentes”, e depois impor o mais possível a lógica do utilizador/pagador – dito de uma forma mais prosaica: “Queres saúde ou queres Justiça? Paga-as!”
A realidade dos nossos Tribunais
Só quem não conhece, ou não queira conhecer, a realidade dos nossos Tribunais, desde os da 1ª instância até ao Tribunal Constitucional (com o seu regime de custas próprio), é que não constata que temos um regime de custas verdadeiramente brutal que faz, por exemplo, com que numa acção em que se discutam interesses imateriais e o respectivo valor seja fixado, por critério legal, em 30.000,01 o cidadão comum tem de pagar não apenas pela intentação (ou contestação) da acção como também por todos e cada um dos impulsos processuais que tenha de promover (fazer ou contestar uma reclamação, um incidente ou um recurso) €612 por cada vez.
“Apoio Judiciário”
E como temos um sistema de chamado “Apoio Judiciário” que apenas isenta de tais taxas e custas os totalmente indigentes (já que basta que um dos membros do agregado familiar do cidadão requerente tenha um salário médio para aquele “saltar fora” da fórmula de isenção), com facilidade se chega – a menos que ele prescinda dos direitos que formalmente lhe estão atribuídos pela lei de processo como os de reclamar ou recorrer – à necessidade de pagamento de 3 ou 4 taxas de Justiça.
Correndo ainda o risco de que, caso perca a acção, tenha de suportar o valor das taxas de Justiça já por si pagas (por exemplo, 4 x €612 = €2.448), como também os €2.448 pagos pela parte contrária e, mais, e a título de “custas de parte”, 50% da globalidade das custas pagas por ambas as partes, ou seja, outros €2.448, tudo perto dos €7.500, só na 1ª instância!
Taxa de Justiça
Para recorrer da sentença final terá de pagar nova taxa de Justiça, aplicando-se a mesma lógica. E se, no final, pretender recorrer para o Tribunal Constitucional, e este, por despacho de um só juiz (o relator), nem sequer quiser conhecer do dito recurso, será condenado a pagar entre 7 a 10 unidades de conta (de €102 cada), ou seja, entre €714 e €1.020. E se reclamar dessa decisão para a conferência (aquele mesmo juiz mais dois), arrisca-se a uma condenação extra de 20 e 25 unidades de conta, ou seja, de mais €2.040 a €2.550!
É manifesto que, com custas assim, o cidadão comum é cada vez mais induzido e mesmo forçado a retrair-se naquilo que não é uma mera “utilidade” ou “serviço”, mas sim um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, e cujo acesso não deve nem poder reger-se pelo tal princípio do utilizador/pagador.
Contratação colectiva
Por outro lado, a contratação colectiva – que sempre desempenhara em Portugal um papel muito relevante nas relações de trabalho, funcionando como um instrumento de melhoramento das condições mínimas legalmente estabelecidas – foi violentamente posta em causa pela conjugação de duas medidas cirúrgicas estabelecidas em 2003 pelo Código do Trabalho de Bagão Félix e que, no essencial, se mantiveram até hoje, mesmo com o Governo PS. Por um lado, permitiu-se a caducidade das convenções colectivas de trabalho (que até então permaneciam sempre em vigor até serem substituídas por novas) e, pior ainda do que isso, se possível, com a destruição do chamado princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, permitiu-se que a contratação colectiva pudesse passar a dispor de forma diferente da lei não apenas no sentido mais favorável, mas também no sentido menos favorável!
Passando assim a possibilitar aos patrões e suas associações colocarem os sindicatos num autêntico “estado de necessidade” por se verem confrontados com a denúncia, por parte das associações patronais, da convenção colectiva com vista à respectiva caducidade e a apresentação de propostas de nova convenção com condições abaixo da lei. Ao estilo do “ou não negoceias, a convenção actual caduca e os trabalhadores filiados ficam ao abrigo da lei geral; ou vens negociar uma convenção cujo ponto de arranque é todo abaixo da lei” – venha, pois, o diabo e escolha!
E sucessivas alterações
Este regime, com as suas sucessivas alterações e agravamentos conduziu a uma violenta diminuição da contratação colectiva, primeiro logo a seguir a 2003 e depois sobretudo a partir de 2011, fazendo com que, por exemplo, o número de trabalhadores abrangidos pela mesma contratação colectiva entre 2008 e 2014 passasse de 1.894.846 para 246.643 (quase 8 vezes menos!).
Em 2015, mercê de algumas alterações, designadamente em relação ao regime das Portarias de Extensão que tinham sido drasticamente restringidas, e de acordo com o próprio Relatório Anual sobre a evolução da negociação colectiva em 2015 publicado pelo Centro de Relações Laborais, o número de trabalhadores abrangidos pela contratação colectiva foi de 490.377 e o dos regidos por Portarias de Condições de Trabalho (fundamentalmente trabalhadores administrativos) era de 78.498, representando um total de 568.815. Isto, enquanto o número total de trabalhadores por conta de outrem no mesmo ano era de acordo com a Pordata de 3.710.600.
Ora, tendo presentes todos os dados que antecedem, como é possível afirmar-se – como se faz no acima referenciado estudo publicado pelo Banco de Portugal – que 90% desses trabalhadores (qualquer coisa como mais de 3 milhões e trezentos mil trabalhadores) estejam hoje abrangidos, designadamente por via das Portarias de Extensão, por contratos colectivos?! É evidente que não estão!
Salário Mínimo Nacional
Não contentes com a miséria do Salário Mínimo Nacional, o que estas teorias pretendem é – como um dos proprietários da Padaria Portuguesa teve o “mérito”, digamos assim, de dizer em voz alta – fazer eximir milhões de trabalhadores e 30.000 categorias profissionais às regras já de si mínimas das convenções colectivas de trabalho e permitir – como se sabe, pelo menos desde o século XIX, que inevitavelmente acontece nas relações sociais em que há um dominante e um dominado – que a nível do acordo individual ou até de um acordo de empresa celebrado com uma complacente (ainda que esquelética) associação sindical se possa impor a lei da selva, apresentada cientificamente como a expressão máxima da “autonomia” da “liberdade contratual” das partes e do “bem estar dos indivíduos”. Ou seja, salários ainda mais baixos e horários ainda mais longos do que os mínimos…