De súbito, e há uns 2 dias atrás, falou-se muito quer dos dinheiros saídos nos últimos anos para os offshores, quer das chamadas “Políticas de Justiça” dos últimos 40 anos.
Mas, uma vez mais, de forma completamente mistificatória da realidade.
Com efeito, quanto aos offshores, trata-se de algo que era já muito conhecido, de que apenas alguns ousavam falar mas a que praticamente ninguém, a começar pela Comunicação Social dita de referência, queria dar qualquer atenção: é que entre 2010 e 2015 os ricos e poderosos deste País puderam fazer tranquilamente sair para os chamados paraísos fiscais mais de 28,9 mil milhões, 10 mil milhões dos quais entre 2011 e 2014 sem qualquer declaração ao fisco e, logo, sem qualquer tributação.
Ou seja, o mesmo Estado (e o mesmo Fisco) que nesse período cortaram salários, subsídios e pensões, complementos de reforma a trabalhadores no final das respectivas vidas, subsídios de desemprego e de doença, bem como abonos de família, rendimentos sociais de inserção e complementos solidários para idosos, e que perseguiram implacavelmente os pequenos devedores com penhoras de salários e de casas de habitação, o único imposto que baixaram foi o incidente sobre os rendimentos do capital (IRC) e, mais que tudo isso, deixaram escapar à tributação aquele astronómico valor.
Para se ter uma ideia da dimensão da fraude e da aldrabice bastará dizer que, por exemplo, em 2014, o valor dessas operações chamadas de “transfronteiras”, em vez dos 374 milhões de euros oficialmente declarados, foi afinal de 2.806 milhões, ou seja, 10 vezes mais!
E os indivíduos responsáveis por tudo isto – e que são fundamentalmente os mesmos que destruíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo e lançaram no desemprego centenas e centenas de trabalhadores, que venderam a TAP ao desbarato e a liquidaram como instrumento estratégico de desenvolvimento do País, que possibilitaram e levaram à liquidação da PT, aos buracos financeiros do BPN, do BES, do BCP e do Banif, ao mesmo tempo que os seus administradores e principais accionistas enchiam os bolsos de milhões e os encaminhavam para as tais offshores – passeiam-se e pavoneiam-se impunemente por aí.
E, no fim de tudo isto, é apenas em 2017 – quando já prescreveu o prazo da liquidação da grande maioria dos impostos que, ainda assim, seriam devidos – é que se vem “descobrir” que o esquema seguido em Portugal pelo Estado e pela sua máquina fiscal é a de perseguir e triturar os alvos fáceis, a começar pelos trabalhadores por conta de outrém, do sector público e do sector privado, e dos pequenos contribuintes e deixar escapulir, como água por entre os dedos, as grandes fortunas e os produtos dos grandes golpes e das grandes negociatas?!
Entretanto, e já falando da Justiça, temos por exemplo um Tribunal Constitucional que em 2014 (através do seu famigerado acórdão nº 413/2014, aprovado por 7 votos contra 6) considerou perfeitamente constitucional o já referido confisco dos complementos de reforma dos reformados do Metro, consagrados há décadas na respectiva contratação colectiva e que constituíram um dos argumentos para persuadir ou mesmo constranger tais trabalhadores a irem para a reforma com penalizações mais ou menos elevadas, mas já quando se tratou das subvenções vitalícias dos políticos logo se apressou a consagrar, pelo seu acórdão nº 3/2016, que a sua retirada feriria de forma intolerável o princípio da confiança dos cidadãos!…
E é mesmo absolutamente espantoso – tão espantoso quanto inadmissível… – que no agora divulgado estudo “40 anos de Políticas de Justiça em Portugal” (coordenado entre outros pela ex-Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues e pelo defensor das teses, já por mim aqui referidas, da análise económica do Direito, Nuno Garoupa), pelos vistos, se escamoteie a completa inacessibilidade à Justiça por parte do cidadão como consequência de um regime de custas processuais escandalosamente caro, que apenas podem ser pagas pelos ricos e de que apenas são dispensados os totalmente indigentes.
Que se escamoteie assim que a cada um dos tais trabalhadores reformados do Metro que queira reaver as prestações dos seus complementos de reforma, e se estas no seu total forem, por exemplo, de 31.000€, tenha de pagar não apenas uma taxa de Justiça inicial de 612€ como outras tantas taxas de igual valor todas as vezes que houver a necessidade de apresentação (ou de resposta) de um incidente, de uma reclamação ou de um recurso.
E que corra ainda o risco de, se o processo após 3 instâncias (Tribunal do Trabalho, Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça) e outras tantas taxas de Justiça, e se ele recorrer para o Tribunal Constitucional e este não lhe der razão, ter de pagar mais 20 unidades de conta de 102€ cada, ou seja, 2.040€.
O que tudo pode significar que para o mesmo reformado, e com o chamado regime de “custas de parte” (suportando as suas taxas, as da parte contrária e metade do total), se não vir judicialmente reconhecida a razão que lhe assiste, poderá, ainda por cima, ter de pagar cerca de 8.000€ de custas no total?
E como é possível que no mesmo estudo se passe igualmente por cima quer do total bloqueamento de Tribunais como os Administrativos e os do Comércio com completa aniquilação prática dos direitos dos cidadãos (desde beneficiários da Segurança Social por esta maltratados a trabalhadores de empresas insolventes com salários em atraso), quer do mecanismo completamente arbitrário, insindicado e perigoso em que se transformou o processo penal em Portugal?
Referem os autores do dito “estudo” que, por exemplo, agora não há Tribunais especiais, como era o caso dos tristemente célebres Tribunais Plenários de antes do 25 de Abril que julgavam os presos políticos.
É verdade. Mas certo é que temos hoje o princípio constitucional do Juiz natural (que impõe que não possa haver nem Tribunais especiais, nem atribuições de processo específico a este ou àquele juiz) a ser violentado todos os dias com os poderes que o Conselho Superior da Magistratura e os Presidentes dos Tribunais se arrogam ter para afectar certos processos a certos e determinados juízes.
Não temos também, é certo, a tortura praticada livremente pela PIDE durante os 6 meses de prisão sem culpa formada que a lei admitia. Mas temos hoje a possibilidade legal de um cidadão estar preso durante 12 meses sem que contra ele seja deduzida qualquer acusação.
Não temos a censura oficial do lápis azul do fascismo mas temos o princípio constitucional da presunção de inocência a ser liquidado todos os dias com tão cirúrgicas como sempre impunes violações do segredo de Justiça e o julgamento e sentenciamento de arguidos em praça pública sem qualquer direito de defesa efectiva.
Temos, em suma, um órgão de soberania (os Tribunais) cujos titulares (os juízes) cada vez têm menos de fundamentar as respectivas decisões e o chamado duplo grau de jurisdição (a existência de recurso para um Tribunal Superior) é cada vez mais inexistente (chegando-se ao ponto de, nos termos do artº 663º, nº 5 do Código de Processo Civil, os juízes do Tribunal da Relação se poderem limitar a remeter para anteriores acórdãos, juntando cópia dos mesmos e não procedendo a qualquer análise das questões e problemas, de facto e de direito, que lhes são colocados).
Como temos o Povo, em nome de quem exercem poderes soberanos, que não faz a menor ideia e muito menos tem qualquer poder de intervenção no modo como são formados e como são avaliados (para mais, quando hoje a tendência largamente dominante é para, em nome da “eficiência”, os medir pela estatística dos processos “aviados”) os mesmos juízes.
Porventura o único ponto em que o estudo acerta no alvo é naquele em que se refere explicitamente que “o poder judicial é também político e aos seus agentes não foi conferida qualquer bênção que os coloque acima dos demais cidadãos”.
Mas não retirar daí as conclusões e medidas necessárias para que a Justiça seja de facto aquilo que ela deve ser – um direito constitucional fundamental de todos os cidadãos – é de todo inconsequente.
E tais medidas têm de passar pela drástica diminuição das custas judiciais e pela gratuitidade da jurisdição laboral, pelo fim do regime de custas específico do Tribunal Constitucional, pela fiscalização do funcionamento do Centro de Estudos Judiciários e pela constituição dos Conselhos das Magistraturas formados por cidadãos comuns, idóneos e independentes, pela fiscalização jurisdicional de todos os actos do Ministério Público, mesmo na fase do inquérito, e pelo respeito escrupuloso dos princípios estruturantes de um sistema judicial digno de um Estado de Direito (a fundamentação real de todas as decisões, o efectivo duplo grau de jurisdição, a publicidade das audiências, o princípio do juiz natural).
Porém, disso já os “especialistas” não querem saber…
Mas os cidadãos podem, e devem, querer!