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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Nada sabemos da arte da guerra

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Sun Tzu foi um general, estratega e filósofo chinês nascido no séc. VI a.C.,conhecido pela sua obra A Arte da Guerra, que, ainda hoje, é dada como exemplo teórico a alunos das mais diversas disciplinas, da História ao Marketing e à Gestão passando pelos que estudam a “arte da Guerra” propriamente dita, a de efeito militar.

Sun Tzu disse nessa obra que a guerra é de vital importância para o Estado; é o domínio da vida ou da morte, o caminho para a sobrevivência ou a perda do Império: é preciso manejá-la bem. Não refletir seriamente sobre tudo o que lhe concerne é dar prova de uma culpável indiferença no que diz respeito à conservação ou à perda do que nos é mais querido; e isso não deve ocorrer.

De acordo com Sun Tzu, há que valorá-la em termos de cinco fatores fundamentais, e fazer comparações entre diversas condições os que combatem, com o intuito a determinar o resultado da guerra.

O primeiro desses fatores é a doutrina; o segundo, o tempo, o terceiro, o terreno, o quarto, o mando e o quinto, a disciplina.

A guerra vista por Sun Tzu parece encher-se de efeitos nobres e de uma ética inesperada. É a guerra que defende os povos e o que de melhor têm, que se trava entre exércitos – representantes dos povos mas municiados e treinados legalmente para os defender – e trava-se com um intuito a rasar o afetivo: o que nos é mais querido deve defender-se.

Sun Tzu não conhecia a evolução negativa dos homens, nem dos seus graus de traição, não sabia que as guerras um dia viriam a ingnorar os humanos que as travavam e que se manteriam sob ideais superiores de lucro, ágio, negócio – e interesses materiais de poucos sobre os interesses passionais de todos os outros. Guerras que, todavia, convergem no mesmo princípio: os objetivos não contemplam o valor do ser humano, nem da vida. A guerra está acima dessas coisas. Acima do ser humano. Acima da vida.

Inserido em trabalhos que desenvolvo presentemente – sobre o ano de 1917, já o tenho referido – tenho lido muito sobre a guerra que, a nenhum nível me revelou atrativos.

Curiosamente, foi em textos de portugueses que nela combateram que a emoção mais me chegou. Sem maiores detalhes, e só para exemplo, as memórias de guerra de Jaime Cortesão, convulsionam o leitor incapaz de apreender a gravidade da convulsão vivida pelo autor.

Cortesão foi médico militar nas linhas da frente francesas da I Guerra Mundial. Um dos seus textos, sobre o ataque a militares intrincheirados, por recurso ocasional, num cemitério, é avassalador: mortos e vivos são atingidos pelo ataque – e não sabemos então onde morte e vida tecem as suas fronteiras perante a vitória da insanidade.

A I Guerra inventou novas formas de combate, na mobilidade e na trincheira, nos céus – o céu deixaria de ser para sempre lugar de deuses para conter a ameaça dos homens, que chegavam em balão, em avião e nos famosos zepellins para matar sem aviso nem piedade –, no mar – onde os submarinos violariam os mistérios das léguas submarinas -, no ar, onde a guerra química dava os seus mais catastróficos primeiros passos. O gás de cloro, o gás mostarda e o gás fosgênio, eram afinal testes mortais na sequência do desenvolvimento da indústria química, do século XIX – e dos seus interesses capitalistas.

Fritz Harber (1868-1934), químico alemão que ganhou o Nobel de química em 1918, foi um dos principais criadores dos gases tóxicos usados na Primeira Guerra.

Harber e o exército alemão proporcionaram à história das guerras uma das mais terríveis cenas de mortes em massa, na cidade de Yprès, na Bélgica. Os alemães lançaram nessa cidade cerca de 22 mil cilindros contendo 160 toneladas de gás de cloro contra as tropas aliadas, no dia 22 de abril de 1915. Cerca de 5 mil soldados morreram em menos de cinco minutos e outros 2 mil pereceram, dias depois, por causa dos efeitos colaterais do ataque.

Jaime Cortesão foi gaseado em 1918, sendo evacuado por isso. Correu o risco de cegueira durante o primeiro ano de convalescença. Os gases tóxicos figuram atualmente como os mais letais armamentos químicos e seu uso é expressamente proibido em guerras.

Mas será isto verdade? Claro que não. Ainda há dias, o meio-irmão do líder Kim Jong-un, da Coreia do Norte foi morto ao inalar um tipo de gás, o VX, cujos relatos técnicos referem: “o único uso conhecido do VX é em contextos de guerra química” e o Centro para o Controlo e Prevenção da Doença (CDC, na sigla inglesa) dos Estados Unidos descreve-o como “o mais potente” de todos os agentes que atuam sobre o sistema nervoso.

Somos humanos. Ensinamos as nossas crianças a matar desde cedo, oferecendo-lhes armas e conceitos de destruição. Inalamos a toxidade de uma cultura que, explicando-nos, é absurda e quase inexplicável.

Bombardeamos os vivos – e os mortos. Destruímos a memória e sobretudo a ética.

Nada sabemos da arte da guerra.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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