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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Angola, o texto e o contexto

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Angola poderia ser diferente e poderia ser melhor? Poderia haver melhor repartição da riqueza dos recursos naturais? Com certeza que sim! E isso são os dirigentes angolanos os primeiros a dizê-lo e a reconhecê-lo e a pôr em marcha um processo de abertura, de questionamento, de reforma, de crítica e de desafio à imaginação que eu muito gostaria de ver em Portugal mas que não vejo.

1. As riquezas de Angola

Tudo nesta vida tem de ser contextualizado se não quisermos cometer grosseiros erros de apreciação. Se compararmos a gestão petrolífera angolana com a gestão petrolífera norueguesa não será difícil encontrar razões para qualificar negativamente a situação angolana.

Se tivermos em conta que essa contextualização é absurda, e se fizermos uma contextualização que faça sentido, ou seja, se comparamos Angola com os países da região em que se insere ricos em petróleo e outros recursos naturais, mais precisamente, com os outros exportadores de petróleo da África subsaariana, a saber a Nigéria, o Gabão, o Congo-Brazzaville e a Guiné Equatorial, juntando o Congo-Kinshasa para outros recursos que não os hidrocarbonetos, qualquer análise objectiva só pode conduzir a uma conclusão: Angola lidera pela positiva!

Mais: Angola é o país do mundo que mais tem feito diplomaticamente para evitar que a catástrofe no Congo-Kinshasa seja maior do que o que já é! Angola teve a coragem de dizer não ao ultimato jihadista que queria que o país escancarasse as portas aos pregadores que transformaram a Nigéria num inferno de milícias e grupos terroristas apoiados pelo Irão e outras potências jihadistas. Angola tem exercido uma discreta pressão diplomática para que haja reforma no Gabão e na Guiné-Equatorial.

Angola poderia ser diferente e poderia ser melhor? Poderia haver melhor repartição da riqueza dos recursos naturais? Com certeza que sim! E isso são os dirigentes angolanos os primeiros a dizê-lo e a reconhecê-lo e a pôr em marcha um processo de abertura, de questionamento, de reforma, de crítica e de desafio à imaginação que eu muito gostaria de ver em Portugal mas que não vejo.

2. Angola e Portugal

Angola – excepção muito particular feita a Cabo Verde – é o país cultural e emocionalmente mais próximo de Portugal. E isso salta à vista de qualquer português que tenha olhos de ver e salta também da leitura atenta da realidade histórica.

E isso traduz-se naturalmente numa quantidade de defeitos e também, há que reconhecê-lo, nalgumas virtudes. A enorme atenção dada em Portugal a Angola e a Portugal em Angola tem também muito a ver com isso.

Se levássemos a sério a autêntica histeria, despropósito e desequilíbrio que tomou conta da imprensa ou redes sociais portuguesas teríamos de concluir que (1) só há corrupção de magistrados em Portugal por causa de Angola; (2) a banca portuguesa foi virtualmente toda forçada à intervenção pública por causa dos angolanos; (3) os diplomatas e políticos portugueses só não dizem ainda pior de Angola porque – vis mercenários – estão a pensar nos interesses daquelas centenas de milhares de portugueses que trabalham em Angola, e mais, porque os angolanos são donos de metade da imprensa portuguesa.

Qualquer marciano desembarcado em Lisboa, rapidamente concluiria que os portugueses sofrem de um terrível trauma causado por Angola, e se ouvissem falar de cinco séculos de colonialismo, certamente concluiriam que os pobres portugueses estão ainda traumatizados pelos quinhentos anos de colonialismo angolano que sofreram.

A tal ponto isto é assim que os portugueses parecem dividir-se em dois grupos: os portugueses e os luso-angolanos, porque aqueles portugueses que tenham alguma relação com Angola parecem perder por isso a nacionalidade e a passar a uma suspeita categoria de ‘luso-angolanos’.

3. A judicialização da política

Num excelente artigo de João de Almeida Santos, publicado no Tornado, questiona-se o processo levantado em Portugal contra um dirigente político angolano no contexto de uma apreciação crítica do processo de judicialização da política a que temos assistido nas democracias ocidentais.

Enaltecendo embora a grande qualidade da contribuição dada pelo meu colega do Tornado, gostaria de dizer que estou em desacordo com o essencial da mensagem dada.

Pegando num dos muitos exemplos dados pelo autor, sou da opinião que o golpe dado pelos magistrados italianos na ‘Tangentopolis’ foi positivo. Diz-nos ele que o sistema destruído era melhor que os Berlusconi ou Bepe Grillo que a sua derrocada produziu. Não tenho certezas nesse domínio, mas penso em todo o caso que o poder judicial pode pôr cobro a sistemas inadmissíveis, mas não lhe podemos pedir que seja ele também a encontrar as soluções alternativas.

Também aqui, acho que o problema é mais de contexto do que de texto. Apenas para citar o mais óbvio dos casos, como é possível imaginar que o atentado que vitimou o antigo Primeiro-Ministro português não tenha tido acompanhamento consequente? Por que razão o tráfico de armas para o Irão foi hermeticamente colocado à margem de qualquer investigação?

Ou ainda outro, que não é mais do que o prolongamento mais recente do tráfico de armas para o Irão nos anos oitenta, por que razão a venda de submarinos a Portugal por uma empresa germano-iraniana foi tão distorcida na imprensa e nos processos de investigação judicial? Por que razão as contrapartidas ao negócio de submarinos em contratos gazo-petrolíferos com o Irão e a Venezuela foram totalmente apagadas do processo, como se não tivessem desempenhado um papel fulcral?

O problema não é saber o que se passou entre um político angolano e um magistrado português, o problema é saber quem colocou isso na linha de mira judicial mas nunca permitiu que se visse o que é essencial ser visto?

Quem faz a campanha internacional contra Angola por este país ter parado o jihadismo? Quem prometeu em 2008 e voltou a prometer agora que ia fazer de Sines a central de ‘transhipment’ de gás se Portugal recusar o gás angolano? Quem quer sabotar a cooperação do mundo lusófono?

Claro que qualquer acto de corrupção tem de ser penalizado venha ele de onde vier, mas querer esconder um elefante atrás de um mosquito não é fazer justiça; é ver o texto sem ver o contexto e com isso prejudicar a compreensão do que se passa.

Não, não me preocupa que Portugal investigue um possível acto de corrupção de um dirigente estrangeiro, preocupa-me é a total falta de proporção e de equilíbrio com que atua.

4. A prioridade de Portugal

O Ministro Capoulas dos Santos desafiou a ‘fatwa’ contra Angola e não temeu dar a cara pela cooperação agrícola com Angola, cooperação fundamental para ambas as partes, e ao fazê-lo deu um exemplo discreto que eu creio que o senhor Primeiro-Ministro de Portugal não deve ignorar.

Ninguém precisa nem ninguém quer que o Primeiro-Ministro intervenha onde não tem e não deve intervir, mas exige-se algum sentido do equilíbrio e do bom senso. Um parlamento que conseguiu aprovar uma moção relativa ao massacre perpetrado pelas forças expedicionárias iranianas em Alepo criticando tudo e todos excepto, exactamente, o fautor desses massacres, a República Islâmica do Irão, não tem credibilidade nem legitimidade para falar de moral e de justiça.

O Primeiro-Ministro de Portugal tem que saber fazer o que tão bem fez em Goa. Tem que assumir-se como fautor do encontro da portugalidade, tem que saber fazer frente aos lóbis e interesses que querem sacrificar Portugal aos seus negócios.

Precisa-se de alguém que não tenha medo de fatwas e de enredos, e estamos agora perante esse teste decisivo. A prioridade de Portugal só pode ser a de querer para o seu mais importante e mais próximo parceiro tudo do melhor.

E obviamente que nos compete não interferir numa campanha eleitoral e numas eleições que têm de ser tão abertas e tão rigorosas quanto possível. Para Portugal não interessa se é o partido A ou o partido B que ganha, interessa Portugal e Angola, tão só isso.

5. Outros olhos para ver Angola

E entre todos os desafios, creio que o mais importante é o de nós portugueses conseguirmos olhar sem antrolhos, sem preconceitos, sem manipulação para Angola e o seu povo. Há muito a fazer e a melhorar num lado como noutro.

E toda a crítica será certamente bem-vinda, desde que bem-intencionada, desde que destinada a ajudar a melhorar e não a destruir e a menosprezar, e desde que, mais uma vez, tenha em conta o contexto.

Creio que temos de multiplicar os laços, os intercâmbios e as cooperações entre os dois países, temos que acabar com traumas, temos que pensar no futuro e temos que esquecer as lições a dar e de dar as mãos e abrir corações.

E o meu coração é, inequivocamente, luso-angolano. Profundamente amante e respeitoso da realidade do nosso povo irmão de Angola.

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores.

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