Este artigo resulta de uma certa sensação de mal-estar político que experimento perante a situação algo pantanosa por que o nosso país está a passar.
Normalmente, atribui-se as dificuldades à instabilidade política, ao desemprego ou aos índices macroeconómicos. Em relação à primeira, não há razões de queixa. Há estabilidade, talvez mesmo para o mandato. Em relação ao segundo e aos terceiros, os dados não são bons, mas haverá solução para eles, tendo vindo a verificar-se uma ligeira melhoria. A dívida pública – essa grande dificuldade – há-de certamente merecer uma solução à escala da União. Estou optimista, apesar das recentes (de hoje) manifestações de desvario político de alguns líderes europeus em relação à União, a sessenta anos do Tratado de Roma! Mas não! Não é a isto que me refiro, mas sim à degradação do sistema, em particular do sistema financeiro português, e ao comportamento de certos agentes políticos que mais parece assumirem funções públicas para fazerem fretes privados do que para gerirem o interesse geral. O recente caso dos dez mil milhões em offshore e o papel desempenhado pelo famoso Secretário de Estado (e, naturalmente, pela Ministra) é mais uma montra do que se está a passar em Portugal. A queda do BES e o papel do Banco de Portugal outra montra, que se junta à do BPN, do BPP e do BANIF. A guerra em torno da Caixa Geral de Depósitos outra. O caso da Portugal Telecom outra ainda. E por aí em diante.
Nem vale a pena estar a enunciar as peças avariadas do sistema, naquilo que ele tem de essencial. São demasiadas. E estão a minar a confiança dos portugueses.
O descrédito!
E é nisso que reside o perigo. No descrédito do sistema. De todo o sistema. E sabemos que este descrédito normalmente conhecia soluções pesadas, com botas cardadas que pioravam o que já estava mal, mas parecendo devolver uma espécie de sentimento paternal de segurança a uma cidadania imatura e em regressão. Mas a União, felizmente, lá vai afastando esta solução do nosso horizonte. Hoje, a fórmula é a de um populismo que devolve poder ao povo por interpostos intérpretes (com pretensões vagamente carismáticas), que restaura a soberania nacional, que escorraça os usurpadores da soberania popular (que, no essencial, são dois: o establishment político e o mediático), que promove a transparência total e a segurança, que protege a nação da tenebrosa invasão migratória e repõe os valores nacionais, para não dizer a pureza nacional. Há, depois, sempre um líder tutelar que garante o fio condutor que liga, finalmente, a política ao povo, num final sempre estrepitoso!
As elites
É claro que, no essencial, se trata de um problema de elites. Quando a cidadania fica submetida a apertos fiscais e burocráticos quase insuportáveis e as elites só pensam em si e numa gestão puramente interesseira do poder! É certamente um problema de organização do poder, mas é também – e muito – um problema ético, cultural e civilizacional. De visão do mundo e da vida. De valores e de sentido da existência, já que a pobreza interior de certos personagens que se alcandoraram ao poder parece só conseguir gerar endeusamento do dinheiro, tornando-os absolutos reféns dele e, como consequência inevitável, a cidadania refém deles.
Aquilo a que temos vindo a assistir parece, pois, dar razão às forças políticas que sempre se rebelaram contra as elites e contra um Estado que era apresentado como a “longa manus” do capital e rolo compressor da cidadania. Na verdade, estas elites acabam por lhes dar abundante razão, já que parece que o interesse geral foi capturado por uma cleptocracia gigantesca sem princípios nem valores. Ainda me lembro dos tempos em que a Itália era apontada como o lugar da corrupção e em que nós mesmos nos considerávamos felizes, de tão pobres, mas honestos! Sim, estas elites acabaram por dar razão à esquerda mais radical, à qual, agora também no poder, ainda que por interposto PS, caberá moralmente vigiar e punir com rigor os intoleráveis desmandos, com os próprios instrumentos do poder, agora também ao seu dispor. E este não será certamente um seu papel menor, na dialéctica de poder que estabeleceu com o PS.
A rede e a nova cidadania
Qual é, pois, a solução? Reinventar elites que olhem para um futuro que não seja só o delas próprias? Reconstruí-las eticamente, para além dos simulacros televisivos? Alterar radicalmente o sistema, mas sem saber com que meios? Criar uma República de Juízes onde a cidadania passaria, toda ela, a ré e onde os justiceiros acabariam sempre por exibir clamorosamente a fragilidade dos seus próprios pés de barro, como, afinal, já tem vindo a acontecer?
Sinceramente, não sei qual é a solução. Mas sei que o trabalho de regeneração do sistema terá de começar pelas formações políticas, pela reconstrução dos mecanismos de selecção das elites políticas. E essa é uma solução que está ao nosso alcance, mesmo que a actual elite dirigente não queira, acomodada que está às suas próprias posições de poder e de interesse. A cidadania tem hoje instrumentos de acção que nunca antes existiram: instrumentos de informação, de livre produção de informação e de livre automobilização. A rede e as TICS, com as potencialidades que têm, podem representar uma fortíssima alavanca de transformação da nossa sociedade, começando pela política, que é a forma mais rápida e eficaz de actuar, e prescindindo dessa intermediação que, no passado, foi sendo o lugar deputado do poder das várias elites, políticas e mediáticas. Ou seja, a cidadania tem hoje ao seu dispor instrumentos que podem obrigar o establishment político e o mediático a arrepiar caminho, obrigando-os a vir a jogo e, caso não venham, a derrotá-los no seu próprio terreno. Para tal, não é preciso adoptar soluções populistas, sejam elas de direita ou de esquerda. Basta promover uma cidadania activa nas suas várias frentes e, como disse, em particular, na frente política. Já existem instrumentos para isso. Basta que haja também vontade e acção!
E o PS?
O Partido Socialista – como, aliás, os restantes partidos – tarda a introduzir primárias no seu sistema interno de selecção dos dirigentes. E esse é um sinal de que não consegue sair da lógica endogâmica em que está acomodado. Sei que António Costa não gosta de primárias, apesar de ter conquistado a Secretaria-Geral através delas, de primárias abertas, o que lhe deveria servir de garantia, até pela consistência e sucesso da sua própria prestação. É certo que elas não representam o cadinho redentor de uma identidade política cada vez mais à bolina, embora possam servir de reforço da ligação à cidadania, de regeneração da elite dirigente e de ruptura com essa lógica endogâmica do partido. E por isso António Costa não poderá manter esta posição durante muito tempo sem graves danos para a revitalização de um partido que se encontra reduzido a pouco mais do que a máquina eleitoral para a conquista do poder, ainda por cima pouco eficiente.
Nem endogamia, nem populismo
A questão, como já se compreendeu, é mais vasta. Toca todas dimensões porque está a acontecer uma mudança de paradigma nos sistemas político-sociais e na própria política internacional. A lógica tradicional de recomposiçãoo política já se apresenta insuficiente, embora possa em certos casos mostrar-se aparentemente robusta. E uma das dimensões essenciais é a que se exprime na dinâmica da cidadania, chave de resolução da questão política para além da endogamia partidária, algo suicidária. Os populistas já perceberam isso. Os que perceberam isto, mas não são populistas, devem accionar todos os mecanismos para que nem uns (os endogâmicos) nem outros (os populistas) possam ver triunfar as suas pouco auspiciosas razões. É altura de lutar verdadeiramente por uma “democracia de cidadãos” (Castells) que prescinde do exclusivismo de mediadores que, ainda por cima, já mostraram não ser competentes nem amigos da cidadania. Este caminho até pode ter o nome de “democracia deliberativa”!