Ao cabo de mais de dez anos consecutivos no Brasil, ainda que o sotaque local já se insinue imperceptivelmente no meu linguajar, o léxico – mais do que a pronúncia – sempre me acaba traindo.
Umas vezes mais, outras menos, ao cabo de algumas frases trocadas, os meus interlocutores acabam por manifestar estranheza, ora interrogando-me sobre qual a região do país de onde vim, ora arriscando abertamente um palpite: “Você não é brasileiro…” Nessas circunstâncias, apanhado em flagrante delito de dissintonia com a fala local, não ofereço resistência e confesso sem hesitar: “Não, não sou brasileiro – sou português…” E logo acrescento, para que saibam de imediato que eu sei o que eles pensam de nós: “Ninguém é perfeito…”.
Alguns reagem no sério – “Que é isso… somos países irmãos!”– mas a maioria esboça um sorriso cúmplice, de quem viu revelado um segredo que guardava só para si. E aí opera-se o milagre da língua comum – embora sabendo-nos diferentes, acabamos por estar de alguma forma em sintonia, partilhando com gosto uma fina ironia, cada um terçando armas sem se ferir, como na esgrima desportiva.
Ainda muito generalizadas – tanto nas camadas populares como entre as elites cultas – as anedotas do “português burro” estão hoje um tanto desatualizadas e até já houve um caso, julgado e punido em tribunal, que teoricamente as desencoraja. No mundo pós-moderno de estrito respeito pelas diferenças e até de criminalização das ofensas por motivo de raça, género, etnia ou nacionalidade, outra coisa não faria sentido. Por que haveriam de continuar os Portugueses a ser o bombo da festa – negativamente descriminados – quando tudo o mais (ou quase) já deixou de o ser?
Um pouco de história
Mais do que proibições e castigos legais, importará saber qual a origem do estranhamento que apesar de todas as aproximações e discursos oficiais de parte a parte continua a perpassar o relacionamento entre Portugal e o Brasil. Uma incursão histórica levar-nos-ia facilmente a concluir que a própria diversidade profunda das realidades existentes ab initio de um e outro lado do Atlântico gerou à partida um sentimento de estranheza, nunca inteiramente superado, apesar dos três séculos de história conjunta.
Pelo contrário, bem cedo (logo a partir do século XVI) os autores locais, ainda que a maioria de origem portuguesa – Gabriel Soares de Sousa, Frei Vicente do Salvador, Gândavo, Padre Fernão Cardim, António Fernandes Brandão… – são críticos em relação à colonização lusa e salientam todos eles a vantagens do Brasil sobre a metrópole, centro da Corte. Essa atitude é tão acentuada, que muitos historiadores brasileiros, quando depois da independência, em 1822, houve que inventar a nação, quiseram ver nela os primórdios de uma definição de identidade, classificando-a como “corrente nativista”.
A historiografia brasileira mais recente é crítica em relação a isso, sublinhando, pelo contrário, a extrema ligação entre um e outro reino, derivada, além do mais, da vinda Corte portuguesa para o Brasil no início do século XIX (a “interiorização da metrópole”, de que fala a historiadora brasileira Maria Odila da Silva Dias).
A luta pela independência foi, é certo, mais sangrenta do que muitas vezes se imagina – sobretudo na Bahia, onde estava estacionada boa parte das tropas portuguesas. Mas algumas regiões do Norte e Nordeste tinham preferido continuar ligadas a Lisboa e não ao Rio de Janeiro. E os próprios deputados brasileiros às Cortes liberais tentaram ainda manter a ligação, só tendo rompido com Portugal depois de constatarem que os liberais lusos queriam reconstituir o estatuto de subordinação colonial do Brasil já superado, primeiro com a abertura dos portos, em 1808, logo na chegada de D. João VI à Bahia, e depois com a proclamação do Reino Unido, em 1815.
Jacobinismo Republicano
Proximidade e distanciamento são, portanto, duas constantes no relacionamento bilateral. Onde tudo se agravou foi entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, com a erupção do jacobinismo republicano, que explorou ao máximo no plano político as contradições decorrentes do domínio do comércio e do crédito por parte dos Portugueses, a par da disputa pelo emprego entre nacionais e estrangeiros, sobretudo no Rio de Janeiro.
No contexto dessa rivalidade, houve muitas vezes tumultos, perseguições e mortes. Em Razões da Inconfidência, obra de carácter panfletário publicada em 1925, o escritor nacionalista António Torres chega mesmo a afirmar: “O portuguez é o nosso mais tenaz inimigo” (sic).
Datam daí, também, as anedotas que ridicularizam os Portugueses, vistos como serventuários dos patrões por uma população miscigenada, muita dela com outras raízes culturais, em que havia muito maior lugar para a festa. Daí, também, como explica a historiadora Gladys Ribeiro, da Universidade Federal Fluminense, o epíteto de “português burro”, sempre disposto a sacrificar-se em benefício do patrão, na ânsia de amealhar um pé de meia que lhe permitisse ascender na escala social.
Uma circunstância que escapa ao comum dos Brasileiros que continuam hoje a cultivar o anedotário anti-luso, não se dando conta de que ao procederem dessa forma estão, em última instância, a rir de si mesmos, na exacta medida em que, pelo menos em boa parte, descendem… dos Portugueses! Ninguém é perfeito….