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Sexta-feira, Julho 26, 2024

Memórias de Raul Brandão

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Há escritores dignos desse nome. Entre eles há os que contraem secretos pactos com o tempo, figurando entre gerações como se a afetação dos dias não tivesse força de mácula sobre as suas palavras e estas, compensando-os, nem envelhecem nem se deixam afetar: vão ficando inquietas nos leitores e na contraditória quietude da palavra impressa, esse perpetuar de ideias e utopias.

Na multidão de nomes, destacam-se, esses escritores. Assim se imortalizam, não tanto porque enfrentaram a morte com mais ou menos heroicidade, mas porque a morte os teme, afastando-se, permitindo-lhes a notoriedade.

Um dia, talvez, gente de morte, como alguma que hoje encontramos no nosso quotidiano, perceberá que não tem o destino nas mãos embora exerça o poder mesquinho de negar a vida ao seu semelhante.

É que a morte deixa de fazer sentido para o homem que a encontra. E até o corpo a transcende, fazendo-se pó, ar e húmus (a matéria que se vai tornando terra, resultante da decomposição de animais e plantas mortas, reciclagem de outras vidas). E perante a cultura que se lega como raiz de povos não há morte que a vença. A morte não se herda. Apenas o exemplo dos vivos, que partiram.

Para o morto, aliás, não há morte. Para o eternizado, também não.

Texto estranho este, só para dizer que há um resistente que merece ser lido. Um dos seus livros chamou-se, realmente, Húmus. Acreditem que é, dos “antigos”, um dos que continua a ter procura.Porque vale a pena. Porque nos fala uma língua para lá da ortografia (essa bandeira rota dos conflituosos). Raul Brandão, é dele que falo – cujas Memórias reaparecem agora à luz do dia, reunidas em volume único, por atrevimento da Quetzal.

Editores não atrevidos cedem ao acaso

Para esta “prenda” editorial é óbvio ter contribuído a evocação dos 150 anos do seu nascimento – que foi alvo, há pouco, de atenções muito dignas e profundas.

O lado existencial da sua obra, a forma empenhada, ambígua, como protagonizou a modernidade e o seu tempo e sim, a dualidade vida e morte, fazem de Brandão um caso singular. Há quem diga dele, um ponto de encontro literário, o simbolismo, seu reduto e prática intelectual. Mas os Escritores não se medem pelos rótulos. Como podemos ler na nossa obra e até nestas Memórias.

Raul Brandão foi escritor, jornalista e militar, com longas permanências no Ministério da Guerra, envolvido portanto na máquina burocrática militar. Por vezes, sabemo-lo bem, as três funções (de escritor, jornalista e militar ) confundem-se na diversidade das linhas de batalha. Certo é que Brandão viveu a vida portuguesa das intensidades: o nascimento da I República, a barbárie da I Grande Guerra e a sangria do Golpe Sidonista e o início desse nado-morto destinado a apodrecer por décadas, o Estado Novo.

Viveu, pois, a grande agitação política (as duas primeiras décadas do século XX); e assim sendo, as suas obras “constituem um testemunho indispensável para se compreender não apenas a sua obra mas também o país a que ela se refere como uma obsessão”. Mas a agilidade da prosa, a dinâmica da construção de cenários literários e dramáticos, a presença de recursos estilísticos onde nem a ironia falta, guindam-no ao patamar supremo dos melhores.

Filho de José Germano Brandão, negociante, e de Laurinda Laurentina de Almeida Brandão, Raul Germano Brandão nasceu a 12 de março de 1867, na Foz do Douro, localidade onde passou a sua adolescência e mocidade e morreu com apenas 63 anos, em Lisboa, a 5 de dezembro de 1930.

As suas Memórias destacam o que de uma vida intensa mais o relevou. São três volumes agora reunidos num só volume e constituem um dos exemplos maiores do género na nossa literatura. Memórias pessoais, memórias do seu tempo político e cultural, memórias das pessoas com quem o autor privou ao longo de uma vida consagrada à literatura e ao conhecimento dos outros – as recordações de Raul Brandão transportam-nos para um tempo, para uma sensibilidade e para um modo de escrita irrepetíveis: condensam um talento e um génio literário único.

Não será exagero sugerir estas Memórias para completar as nossas. É que se trata mesmo de um pedaço de nós. E se nos faltam as memórias, a marca da morte sobressai sobre o que fomos, o que somos – e o que ainda podemos ser.


MEMÓRIAS
de Raul Brandão
Última edição: QUETZAL EDITORES, Lisboa, março de 2017
ISBN: 9789897223365
PVP: 19,90€

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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