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Domingo, Novembro 3, 2024

Porque é que ainda gosto de História

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Do Avesso

Tanto como gosto de História. Também me fascinam, há muitos anos, as teorias da mesma História, e nelas a ideia de mutabilidade permanente, o inventário dos caminhos do Homem como alteradores. 

Tanto como gosto de História – área onde me formei e pós-graduei e que me conduziu ao estudo da Cultura enquanto objeto científico à mercê do Homem, coisa antropológica e sobretudo atávica, capacidade infinita de distorção da Natureza -, também me fascinam, há muitos anos, as teorias da mesma História, e nelas a ideia de mutabilidade permanente, o inventário dos caminhos do Homem como alteradores, isto é, como operacionais de novas mudanças que permitam não identificar quem somos no retrato a sépia do que somos, ocupados com o tempo presente e a sua transformação, mas sobretudo entender-nos como seres divididos entre ideologias e utopias – e absurdamente despreocupados com o futuro.

Sem História não seria capaz da abstração. Não me entenderia como ser. Não me indignaria com a possibilidade de voltar atrás.

Sem História não saberia que essa forma pequena de pensar como o aldeão que nunca viu mais do que a aldeia e a lama onde enterra os pés desde menino (visão a que chamamos normalmente nacionalismo, o folclore em grande escala populista) é um erro que nunca trouxe bem ao mundo.

Sem História seria prisioneiro da tradição, essa mentira fundamentalista que só serve na época em que se apresenta como tradicional (o exemplo melhor é o do pai natal que, há anos, vestia de verde e não era o velhinho simpático que cruzava os ares em trenó puxado a renas ou os novos extremismos que querem por os povos ao ritmo do século VII, aparentemente ignorantes da fantástica caminhada que os afastou dessa tristeza de onde partiram para um futuro de libertações inigualáveis).

Nenhum povo é um povo

Tenho lido, em quase toda a minha vida adulta,  livros de ideólogos, da esquerda e da direita, que procuram explicar-me se possuímos ou não uma identidade nacional, melhor, uma identidade cultural, que nos defina como povo na diferença comparativa com outro povo que, mais além, dentro das suas fronteiras, se defina como massa autónoma e diversa.

Todos, até os mais recentes, deixam-me com “água na boca”. Esquecem coisas que a meu ver são essenciais: nenhum povo é um povo, mas um mosaico de povos, a começar. E nenhum mosaico de povos, que apenas se entende, vagamente, como “massa” quando visto à distância, é uma matriz analisável sem ser colocado em cima da mesa de operações ou na lamela do microscópio e dissecado na sua essência e complexidades.

Nesses livros – O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, Portugal Hoje o Medo de Existir de José Gil ou outros menos saborosos – esquecemos particularidades inquietantes: a presença das minorias, a mescla dos povos que finalmente (depois de Abril de 1974) se reuniram no espaço a que chamamos Portugal e ali tiveram filhos e misturaram raízes e formas de criar cultura repartindo-a e interligando-a na geografia possível, com a sua elite, elite subjacente à dominante, que produz música, cinema, poesia, literatura, arquitetura, pintura, arte de rua, novos ritos, novos símbolos mesmo difusos, novas expressões que não se querem herdeiras, novas religiosidades e novas estruturas de crença que são, afinal, a tradução dos seres humanos comuns tal como se sentem, novas sexualidades e novas noções de família, novas sensualidades e novos mitos, novas plataformas de onde estará a emergir o mosaico que um destes dias leremos.

Diferenciamo-nos pela ação

Cantamos e dançamos hip hop, rap, kuduro – mas só o fado é património mundial. Dançamos kuduro e kizomba, assimilamos neologismos e transfiguramos a nossa culinária, amamos em todos os tons de pele e coabitamos (do templo que nos diferencia ao lugar de culto que nos redefine, dos pequenos aos grandes grupos sociais, percorrendo-nos de condutas diferenciadas e de uma interculturalidade necessária.

Mas os ideólogos insistem em ver-nos como coisa amalgamada e definível nos quadros de uma História que não tem nem dois dias semelhantes dos tantos que produziu.

É por isso que ainda somos dos países mais pacíficos do mundo, mesmo quando há desacatos, conflitos e diferenças. Porque somos plurais, mosaico, fazemos sentido pelo encaixe do que nos diferencia.

Devíamos debater o que sentimos, pois andamos presos do que não dizemos e órfãos de muitos afetos. Para que sigamos em frente com esta magnífica aptidão do multicultural, onde a História nos gerou e a cultura nos promove. Somos atividade conjunta. Ou, pelo menos, é sendo pela ação que nos diferenciamos.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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