Não é uma marca de nascença. Nem um sobrenome ou herança de berço, fosse assim somente os operários poderiam defender a própria classe na esperada luta e vitória contra a desigualdade social capitalista. Não é tampouco algo exclusivamente relacionado à idade, embora aí esteja uma pista.
Os jovens pela própria natureza são contestadores e gostam de abraçar causas. Formam a personalidade no confronto com os valores de origem. Uma vez ouvi de um amigo, sobre nossas ferozes discussões na faculdade: “Aqui vivemos a utopia”. Sem dúvida, não tínhamos nada a perder. Olhando em perspectiva, é curioso – e não há aqui crítica alguma – perceber que os justamente os militantes, os “bichos-grilos”, hippies e desapegados, esses se tornaram os empresários da turma.
O que houve com a rebeldia e os ideiais da mocidade? Esta é, talvez, uma das grandes perguntas do livro “Memória de neblina”, livro de Luiz Manfredini, editora Ipê Amarelo.
Parece-me que, na obra, o autor desarquiva lembranças de décadas, levando luz aos personagens principais da sua juventude. A neblina, tão comum nas paisagens ao Sul, como Curitiba, terra natal de Luiz, certamente é uma metáfora para o horizonte inexato do futuro quando ainda se percorre os anos verdes do caminho.
Dois personagens centrais dominam a ação, o narrador, também protagonista que atende pela alcunha de “professor” ou Pedro simplesmente, e Lau. O primeiro, ditadura acabada e alguns relacionamentos desfeitos, escreve um romance enquanto conta a história do segundo, com referências meticulosas de todos que formavam “a turma” nos obscuros anos 1960 e 1970. Como bons amigos, Pedro e Lau tentam se acompanhar em meio a um enredo sinuoso e não linear, que segue o prumo do tempo que se esvai.
Logo nas primeiras páginas, Lau demonstra o medo de cultivar desapontamentos por semear vínculos com o passado. O narrador explica que, além das inevitáveis mudanças físicas, Lau temia as mudanças nas almas de seus camaradas:
Como o tempo também fustiga a alma, transmudando-a muitas vezes, você temia que elas não já guardassem nenhum dos traços que nos uniram tanto no passado. Você dizia ser esta uma solidão suprema porque muito pouco restava, de realmente decisivo, para além das relações nutridas nos anos primordiais da vida.”
Pretensamente protegido pelo medo, Lau construía sua memória a partir de monumentos, uma praça, um edifício, uma rua. Ou objetos. Nada que possuísse alma.
Se acaso um desses vestígios desaparecesse (uma casa ou praça) o máximo que disso resultaria seria apenas a redução de provas do passado, nada comparável à percepção devastadora de protagonistas para quem os anos vividos já não possuíam a menor importância, ou ainda não mantinham qualquer registro importante ou, pior, desenvolverão cosmovisão oposta às generosas fantasias de guris.”
Este é um dos dilemas cruciais da obra, que mostra os garotos desde o colégio militar até a militância política e, finalmente, chega ao encontro marcado com uma vocação comum: a escrita. Que pode esperar, e espera à margem dos fatos, enquanto todos seguem na clandestinidade e na luta. São estudantes, a maioria de origem burguesa, ultrapassam obstáculos para lutarem lado a lado com os operários. Todas essas dificuldades são tempero para a trama que não tem um compromisso maior com a história de um país e, sim, com a história da índole revolucionária.
Em um episódio, Lau vai à redação de jornal onde está Otto Maria Carpeaux, um sábio de todos os tempos. Pouco mais que um adolescente, o personagem está envolvido com o sonho de escrever romances, quer saber quais habilidades uma pessoa precisa ter para se tornar escritor. Carpeaux responde com uma simplicidade que não privilegia em seus textos:
Três coisas, caráter em primeiro lugar, caráter em segundo lugar, e talento em terceiro lugar”.Eis aqui metade da resposta à pergunta que deu origem a esse artigo, caráter em dobro e talento natural são as características de um revolucionário. A segunda metade desta resposta é praticamente a comprovação da primeira: quem tem essas qualidades não se apega a bens materiais, está sempre pronto a deixar tudo pela luta revolucionária.
Na obra de Manfredini, os jovens preferem a fome e o risco da tortura a voltarem para a casa dos pais, encantam-se com a ideia de luta no campo já que a cidade tornou-se uma bomba-relógio pronta a explodir sobre suas cabeças.
Em tempos de paz, tamanho heroísmo pode ser dispensável, mas deve estar sempre de prontidão. O revolucionário não se acomoda com a injustiça, fantasma sempre à espreita, não perde a fé mesmo que os fatos contrariem seus dogmas. Bom exemplo está na última página do livro, a queda do muro de Berlim. Ela pode ter reduzido a pó convicções superficiais, mas não soterrou a verdade revolucionária.
Esta é também a crença dos meninos de Memória na neblina. Se todos do grupo se mantiveram fiéis às crenças do início, isso poderá ser descoberto na leitura, página a página, mas uma mensagem que o livro deixa, posso antecipar. A injustiça não mora longe e o grande campo de batalha, do comum dos cidadãos, é o ambiente de trabalho. Você exerce ali a sua consciência política, em favor dos colegas, sem medo de perder o emprego?
É um bom exercício fazer essa checagem, verificar se a visão crítica e construtiva, revolucionária no sentido de organizar as classes para a grande luta histórica, está sendo exercida por você no dia-a-dia, afinal, há muito tempo, na pureza dos tempos, você se comprometeu com ela e ela poderá vir lhe cobrar atitudes.
Você se comprometeu com o menino dentro de você, como bem ilustra o texto de Manfredini, no qual Lau fala consigo mesmo ao descobrir documentos do passado:
Ao me passar o bastão, o menino encarregou-me de conferir-lhe uma completude que a tenra adolescência ainda não havia lhe trazido. E agora, nesse fortuito encontro entre o seu futuro e o meu presente, inquiria-me com olhos que ainda guardavam inocências de antigamente, sobre que diabo eu havia feito com suas fantasias”.
Ficam esta pergunta e a resposta: burguês não pode perder emprego, dinheiro, família pela luta por ideais. Revolucionário não pode perder os ideais por emprego, dinheiro ou família.
A autora escreve em português do Brasil