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Sábado, Agosto 31, 2024

“En Marche!”, Enfants de la Patrie!

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

O resultado das eleições presidenciais francesas introduziu uma certa acalmia política no agitado e algo imprevisível ambiente da política mundial. Com efeito, sendo a primeira volta das presidenciais um momento que permite aos eleitores canalizarem eleitoralmente as suas convicções (não direi profundas, porque a oferta é sempre limitada), ou seja, dar livre curso a uma “ética da convicção”, a vitória do centrista e liberal Emmanuel Macron é um claro indício de que o perigo parece estar a afastar-se, embora haja muitas variáveis que poderão perturbar este resultado, sobretudo porque a diferença entre os dois candidatos é pequena. Na segunda volta falará certamente mais alto a “ética da responsabilidade” e a maioria dos eleitores votará certamente no menos perigoso dos candidatos, ou seja, em Macron.

Diferenças programáticas entre Le Pen e Macron

De facto, o candidato de “En Marche!” venceu o primeiro turno com 24,01% contra a candidata de “Front National”, Marine Le Pen, que obteve 21,3%, posicionando-se em segundo lugar e garantindo, assim, a presença na segunda volta. Dois candidatos com posições ideológicas opostas, embora nos programas de governo haja pontos convergentes: por exemplo, na manutenção do salário mínimo (€1.466,62) e dos escalões do IVA e na redução do imposto sobre as empresas. Sim, mas são muito mais as diferenças programáticas. Vejamos.


Marine Le Pen

Emmanuel Macron
Favorecer as empresas francesas Favorecer as empresas europeias na Europa
Enquadrar a “ubérisation” (modelo de “economia colaborativa”) do trabalho Alinhar os direitos dos trabalhadores independentes e dos assalariados
Revogar a lei do trabalho, aprovada em 2016, depois de 5 meses de contestação social Mantê-la
Manter o tempo de trabalho nas 35 horas Flexibilizá-lo
Aumentar as pequenas reformas Mantê-las
Baixar a idade da reforma para os 60 anos Manter os 62 anos
 “Minima” sociais só para os franceses Criar um subsídio único) – hoje há cerca de 5 milhões de beneficiários
Reformar o regime social dos trabalhadores independentes Suprimi-lo
Prioridade para os franceses na habitação social Construir mais
Baixar o imposto sobre o rendimento Individualizá-lo
Manter o imposto de solidariedade sobre a riqueza  Isentar o investimento na economia
 cortar na despesa pública ligada à imigração e à Europa Reduzir a sua parte no PIB
Suprimir o jus soli Mantê-lo
drástica redução das entradas em território francês (de 200.000 para 10.000, por ano) Reduzir 120.000 funcionários públicos, num universo de 5,6 milhões

Fonte: “Le Monde”, 23.04.2017

A questão de fundo

Mas o que mais importa são as posições de fundo e, em particular, a posição sobre a União Europeia, de que a França foi fundadora. Claro, elas estão plasmadas no programa, nas medidas acima enunciadas e na atitude radical de Le Pen de referendar (e de propor) a saída da União e do Euro. O quadro de valores também é radicalmente oposto: por exemplo, cosmopolitismo de Macron versus nacionalismo de Le Pen. A colocação política de Marine Le Pen e da “Frente Nacional” tem uma matriz iliberal, o que diz tudo sobre a alternativa representada pelo liberal Macron e pelos valores que esta colocação política reivindica.

As probabilidades de Macron vencer são boas, visto o apoio que já obteve dos restantes candidatos, à excepção de Jean-Luc Mélenchon (“La France Insoumise”), da esquerda radical, pouco amiga do europeísmo do centrista (“nem de esquerda nem de direita”). De resto, se não erro, Mélenchon parece ter evoluído para uma posição “soberanista”, agora acentuada pela natureza da função a que se candidatou. O grande teste – que é multifacetado, porque a ideia de Europa tem complexas implicações a todos os níveis –  é o da União: sair (Le Pen: Frexit) ou permanecer (Macron, o mais europeísta dos candidatos). Permanecer, sim, diz Macron, mas com novas ideias, designadamente em relação à zona euro e ao futuro. De resto, a União representa muitos valores, inscritos na “Carta dos Direitos Fundamentais da UE”, que a FN não partilha. Na verdade, o que está aqui em jogo é a própria matriz política da democracia francesa e é por isso mesmo que já se está a constituir uma larga frente de oposição a Le Pen e à “Frente Nacional”.

A crise do sistema de partidos

Um outro aspecto muito relevante é o da derrota do velho sistema de partidos, centrado nos republicanos e nos socialistas, tendo em consideração os consistentes resultados dos movimentos de recente criação: “En marche!”, há cerca de um ano; “La France Insoumise”, também com pouco mais de um ano de vida. Certamente que esta é uma eleição unipessoal, mas também é claro que mesmo este tipo de eleições exige sempre um referente orgânico, um movimento político de apoio e uma larga base organizacional. Para não dizer mais, uma vez que as lideranças só sobrevivem se tiverem um real corpo orgânico. E os corpos orgânicos foram criados sob forma de movimentos que agora certamente tentarão consolidar-se no terreno das eleições legislativas que ocorrerão em Junho.

E, mais uma vez, agora em França, se verifica uma recusa do establishment, demasiado comprometido, fragilizado e incapaz de responder à mudança e aos novos desafios, permitindo que a linha da frente seja conquistada por um movimento muito recente, personalizado em Macron e que se reivindica da cidadania e das novas gerações. O candidato dos republicanos ficou em terceiro lugar (20,01%) e o socialista em quinto (6,36%), muito atrás de Mélenchon (19,58%). Estas eleições confirmam, pois, uma tendência alternativa à política convencional que tem vindo a ser interpretada pelos partidos do chamado establishment, em particular pelo partido socialista, o grande derrotado.

E o resultado final ver-se-á nas legislativas que irão ocorrer a 11 e 18 de Junho, sendo esta a ocasião para verificar em que medida os novos movimentos estão em condições de se afirmar eleitoralmente e como organizações políticas estáveis, dando corpo orgânico à dinâmica eleitoral conseguida pelos líderes. Neste terreno, a conquista revelar-se-á, todavia, mais complexa e difícil. O que, entretanto, já se verificou nestas eleições foi uma fragmentação política, à semelhança do que já aconteceu em Espanha, com a subida ao palco de novos protagonistas, partidos/movimentos e líderes.

Só que aqui a consolidação no terreno da representação parlamentar é mais complexa do que em Espanha devido aos sistemas eleitorais (proporcional, em Espanha, favorecendo a integração institucional). E não foi por acaso que o “New York Times” (de 23.04) titulou um artigo de primeira página: “Voters Embrace Outsiders in Election to Lead France”! Na verdade, os “Outsiders” estão a ganhar palco cada vez mais nas democracias ocidentais. E o anátema em circulação é: “populista!” – quando, na verdade, o que isto representa é algo muito mais profundo do que uma simples fórmula política!

Conclusão

Mas a questão central – pelo seu impacto num espaço de cerca de 500 milhões de cidadãos, o maior mercado único e o segundo PIB mundial (22% contra 24% dos USA), com uma moeda que disputa o espaço financeiro mundial ao dólar (em poucos anos, já com 30% contra os 43% do dólar) – diz respeito ao perigo que correria a União caso vencesse Le Pen. Provavelmente a desagregação. Pelo contrário, Macron pretende “dotar a zona euro de um orçamento, de um parlamento e de um ministro da economia” e ao mesmo tempo “lutar contra o avanço dos discursos anti-Europa, propondo conferências da cidadania para um novo projecto europeu” (Le Monde, 23.04.17).

O que já é qualquer coisa, sendo também realista porque este projecto não segue uma lógica pura de Europa a várias velocidades, já que se limita a reforçar a componente política de um espaço já existente, a zona euro; por outro lado, parece também haver consciência de que a grande tarefa das lideranças europeias deva ser o combate político em defesa da União, demonstrando à cidadania europeia a necessidade de a preservar e de a promover como solução de futuro para os desafios da imparável e implacável globalização.

Se ganhar Macron, como se espera, será um passo em frente ou será só a menos má das escolhas? Como diria Sartori: precisamos mais de políticos com “gravitas” do que de “velocisti” peso-pluma. Para ser sincero, Macron tem todo o ar de ser um “velocista”. A rapidez com que se afirmou e as suas origens profissionais deixam-me um pouco inquieto, atendendo precisamente à velocidade com que se processam os fluxos financeiros, área donde provém. Dizem que a função faz o órgão, havendo, pois, esperança. Mas, com o que aconteceu ao seu padrinho Hollande, é caso para temer o pior. Mas esperemos que não!

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