Francisco Fanhais, presidente da Associação José Afonso
Trinta anos que “insistem não ser tristeza”. Francisco Fanhais, companheiro de várias lutas de Zeca Afonso diz que continua a fazer falta “A Formiga No Carreiro” e que “Os Vampiros de hoje são os donos dos bancos e da alta finança que passam incólumes às suas trafulhices”. Dois dedos de conversa com o amigo “Sanfras”, em dia de 25 de Abril.
Jornal Tornado: Que significado tem hoje comemorar a memória de Zeca Afonso?
Francisco Fanhais: Do nosso ponto de vista faz todo o sentido continuar a comemorar hoje a memória de Zeca Afonso. Esse é aliás o objectivo da Associação José Afonso, que nos trinta anos da sua existência continua a congregar mais e mais amigos. E fazemo-lo, em primeiro lugar, pela genialidade da sua obra, que continua viva e capaz de entusiasmar e contagiar diferentes gerações.
Em segundo lugar, pelo seu exemplo de cidadão vertical, desinteressado, generoso, que vivendo em diferentes situações históricas em nenhuma delas se acomodou. Sempre interveniente, crítico e solidário. É por isso que na Associação José Afonso continuamos apostados em divulgar a sua obra, e o seu exemplo de artista e cidadão.
Se Zeca Afonso estivesse vivo qual seria a sua grande luta? Por que ideal se debateria? De que lado da história recente estaria?
O ideal era ser ele a responder, como desejaríamos, se continuasse fisicamente connosco. Por mim e, apesar de ter tido com José Afonso uma relação de grande amizade e cumplicidade durante vários anos, nada me autoriza a falar em seu nome. Mas talvez possa encontrar uma resposta global à questão, nas palavras que o próprio Zeca escreveu. Guardo comigo um texto/barra mensagem, que me pediu para ler na noite de 27 de Janeiro de 1984, em que, já bastante doente, um grupo de amigos o homenageou em Braga.
Cito três parágrafos dessa mensagem:
Mas esta festa não pode ser só uma homenagem a um homem. Seria bem pouco. Tem de ser também um encontro de pessoas que recusam a anestesia que o sistema nos quer impingir e, sobretudo, um apelo à juventude para que mantenha sempre um espírito crítico e uma atitude de esclarecida resistência face aos pseudo-valores que a sociedade capitalista nos pretende impor. E se é certo que a situação actual não é a mesma que antes do 25 de Abril, importa manter a capacidade de indignação e sermos capazes de rejeitar a hipocrisia dos detentores do poder. Encontrando-me actualmente numa fase de pouca actividade física, reafirmo a disposição de me deslocar mais tarde a Braga, onde espero reencontrar os amigos, e dialogar e conviver com os jovens, e com todos aqueles para quem a justiça e a fraternidade são a razão da sua luta. Obrigado companheiros, um abraço do Zeca!”
De uma coisa eu tenho a certeza: o Zeca continuaria fiel ao que escreveu. E este texto anda sempre comigo, leio-o sempre que vou cantar a qualquer lado.
E comemorar Abril, continua a fazer sentido?
Naturalmente que sim. O 25 de Abril foi seguramente o acontecimento mais importante da nossa história recente. Pôs fim a um regime de ditadura com quase meio século e reconheceu o justo direito à independência dos povos das colónias. Mostrar às gerações mais novas, com exemplos concretos, a natureza deste regime de iniquidade, de repressão, de amarfanhamento social e cultural é um dever cívico, particularmente actual no momento em que pelo mundo se adensam nuvens carregadas de incertezas e com manifestações de racismo e belicismo que julgávamos definitivamente vencidas pela história.
Mas, comemorar o 25 de Abril é também um modo de nos posicionarmos perante a vida e perante o mundo. Lembrando-nos ou evocando como o derrube da ditadura pelos militares do MFA suscitou um imediato e vibrante envolvimento popular. O acontecimento transformou-se numa revolução. O 25 de Abril permitiu-nos olhar para um futuro ao alcance das nossas mãos. Trouxe-nos a democracia e a Liberdade. A Liberdade de intervir e dar opinião e é um direito inalienável de todos e de cada um de nós.
Que música dedica a 43 anos de 25 de Abril?
Dedico o poema do Zeca “Enquanto Há Força”, do álbum com o mesmo nome.
Abril abriu portas? Ou Abril também fechou portas?
Só fechou para aqueles que estavam a favor da repressão e da ditadura, obviamente. Para quem andava ansioso por ver portas abertas, janelas abertas, desejoso de ver a liberdade nas ruas e a invadir-nos no quotidiano, para esses as portas ficaram aberta e escancaradas.
“Mostrar às gerações mais novas, com exemplos concretos, a natureza deste regime de iniquidade, de repressão, de amarfanhamento social e cultural é um dever cívico”
“ Os Bravos são todos aqueles que não desistem de lutar, que insistem em não ser tristeza, que não se deixam amarfanhar”
Seis músicas, seis perguntas
“Vejam bem”, o que é afinal a liberdade?
A liberdade não é libertinagem, a liberdade não é fazer o que me apetece sem querer saber o que faço aos outros. No fundo é a velha máxima: a minha liberdade acaba onde começa a dos outros. Temos que encontrar uma forma de podermos exercer a nossa liberdade mas sem esquecer nunca o objectivo comum – mais vasto que a nossa própria liberdade individual, é a liberdade colectiva da Justiça e da Fraternidade para todos.
Quem são os “Vampiros” de hoje?
Não seria muito difícil encontrá-los – os donos do bancos e da alta finança que passam incólumes às suas trafulhices sem que ninguém os trave na sua ganância, em detrimento de todos aqueles a quem a vida custa diariamente e que fazem esforços sobre-humanos para poderem sobreviver. Há muita gente a viver acima das nossas possibilidades, este são os vampiros de hoje.
“Os Vampiros de hoje são os donos do bancos e da alta finança que passam incólumes às suas trafulhices sem que ninguém os trave na sua ganância”
“O que faz falta”?
Faz falta muita solidariedade, muito espírito de fraternidade entre todos. Faz falta que cada um saiba que o outro é irmão, que o outro precisa de mim e que eu preciso do outro para ser feliz. Ninguém é feliz sozinho. Faz falta cobrar, agitar, libertar, dar poder à malta… porque Abril é uma meta por atingir.
E quem são “Os Bravos”?
Aqueles que passaram uma vida inteira a trabalhar e sobre eles se constroem muros. Os bravos são aqueles que já morreram e deixaram um rasto de justiça e esperança no mundo. São todos aqueles que não desistem de lutar, que insistem em não ser tristeza, que não se deixam amarfanhar. Tão conhecidos uns, tão desconhecidos outros: os bravos são aqueles que atravessam o mar e sabem que vão correr risco de vida, que são vítimas da ganância de meia dúzia que exploram a vida e a morte de tanta gente que anseia pela liberdade. São todos estes que enfrentam dificuldades para contribuírem para que este mundo seja cada vez mais fraterno. São os que não desistem de lutar. Os que não se calam.
“Venham Mais Cinco”. Quem gostava que fossem?
Seriam cinco multiplicados por mil milhões. É um número a multiplicar por muitos. Todos aqueles que estão empenhados em transformar o nosso mundo, que venham eles todos. Cinco é um número mágico na canção do Zeca, mas é um convite para os que estão empenhados em construir um país e um mundo diferente. Que venham eles todos e que tragam outro amigo também.
“A Formiga No Carreiro” continua a andar à roda?
“A Formiga No Carreiro” são todos os que não se conformam, que vão em sentido contrário e não alinham no fatalismo, quando é mais fácil estar em casa a cruzar os braços. São os que não alinham no rame-rame da existência quotidiana e lutam para algo mude no nosso País. São todos o que não se conformam, que sabem que têm filhos e netos e que aspiram por lhes dar um mundo diferente daquele que receberam. Se os nossos netos nos perguntarem o que fizemos para eles encontrarem um mundo melhor e a nossa resposta for o silêncio, ou cruzar os braços, estamos perante a resposta mais cobarde que lhes podemos deixar.
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