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Sábado, Novembro 2, 2024

A propósito de “Vasco da Gama”

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A surpresa mais agradável que tive ao desembarcar em Goa no ano passado foi descobrir as atitudes calorosas e positivas do povo Indiano em relação ao velho colonizador local, incluindo em relação aos seus símbolos históricos tais como Vasco da Gama, primeiro navegador português a desembarcar no subcontinente indiano (e cujo nome foi dado à maior cidade de Goa).

Vasco da Gama, assim como muitos dos seus sucessores, e com certeza assim como muitos dos seus predecessores como por exemplo, os colonizadores islâmicos, deixou legados tanto negativos como positivos. Feitas as contas, qualquer realidade pode ser interpretada através de várias formas; o crucial é saber articular todos os pontos de vista numa perspectiva global positiva. O que achei mais fascinante em Goa (e penso ser verdade para toda a Índia) foi a capacidade tirar o melhor de más situações e enfrentar o futuro com optimismo.

O simbolismo de Vasco da Gama

Vasco da Gama foi um actor fundamental na criação da era moderna (O Sistema-Mundo Moderno) tal como descrita por Immanuel Wallerstein e deu o ímpeto decisivo a essa globalização.

A ambição do espírito do tempo de então não era a descoberta ‘de novas terras’ mas sim a descoberta de novos meios de acesso a riquezas mais ou menos conhecidas. A Ásia – acima de tudo os seus dois grandes centros humanos, China e Índia – era então a parte mais desenvolvida do mundo. Os mercados europeus valorizavam grandemente os têxteis, as porcelanas, os metais trabalhados e as especiarias provenientes dos mais avançados centros de produção industrial daquele tempo.

Em contrapartida o continente americano não era visto como de interesse, colonial ou outro. Colombo convenceu os reis católicos a financiar a sua expedição com a promessa de uma rota para a Ásia pelo Ocidente que pouparia o transtorno de contornar o vasto continente africano. O apoio às viagens subsequentes foi conseguido apenas convencendo os reis de Espanha de que Cuba era o Japão (Cipango) e de que os habitantes do continente americanos eram habitantes da Índia (“Índios”). Quando a verdade dos factos emergiu já a prata e o ouro se tinham implantado como motor alternativo de expedições colonizadoras.

Vasco da Gama simboliza assim a substituição das rotas tradicionais das especiarias através do Golfo, Mar Vermelho e Mediterrâneo assim como a antiga Rota da Seda que já um dia tinha posto em contacto Romanos e Chineses.

Actuais rotas: tecnológicas e económicas

Desde a revolução industrial que a Europa foi capaz de reverter a relação mantida com os grandes centros asiáticos; durante um quarto de milénio foram os bens industriais (e alguns agrícolas) ocidentais passaram a dominar.

O rápido crescimento asiático (muito em particular, o da China desde 1978) que hoje testemunhamos pôs termo a esse período: hoje vivemos uma nova era na qual o engenho económico chinês – assim como as empresas, produtos, padrões e modelos de gestão – dominam os fluxos da globalização. Isto representa um enorme desafio para o mundo inteiro, nomeadamente para os velhos centros ocidentais e para outras realidades emergentes na Ásia.

Um dos símbolos mais importantes dos novos tempos é o OBOR (Uma Cintura, Uma Estrada ou “One Belt One Road” em inglês). O slogan é enganador: falamos na realidade de inúmeras vias (marítimas e ferroviárias, mais do que estradas) em vez de uma e em todas as direções em vez de um único corredor como o que é geralmente inferido pelo termo “cintura”.

Fazendo jus aos seus paradoxos, o OBOR é subdividido entre a ‘cintura’ que articula infraestrutura industrial e de transporte por terra e a ‘estrada’ (“road”) pela qual se entende a Rota da Seda Marítima. A dita Rota da Seda é ainda um oximoro histórico na medida em que a rota marítima inaugurada por Vasco da Gama transformou-se na alternativa histórica á antiga ligação da Rota da Seda à Europa.

Se olharmos para o OBOR mais de perto distinguimos seis “corredores económicos”, entre os quais o denominado ‘Nova Ponte Terrestre Euroasiática’ (“New Eurasian Land Bridge, NELB) que compreende as conexões por terra ao continente europeu. No ano passado contavam-se já mais de trinta ligações ferroviárias entre a China e a Europa, ultrapassando largamente as definições convencionais do termo ‘ponte terrestre’.

O OBOR pretende envolver 65 países representando 70% da humanidade. Exclui acima de tudo as Américas, a Europa Ocidental, a maior parte de África e o Japão. Mais uma vez, não nos podemos contentar com esta descrição sumária do projecto.

O que representa hoje Portugal nas rotas internacionais?

Portugal por exemplo representa hoje uma das portas de acesso à Europa de maior interesse estratégico para a China, embora tal não seja aparente no projecto OBOR. A companhia aérea TAP, anteriormente pertencente ao Estado Português e membro da maior aliança aérea privada no mundo, pertence hoje em 20% à empresa aérea chinesa HNA, a qual domina 14 outras companhias, na maior parte chinesas.

Em fins de 2016 as autoridades portuguesas e chinesas assinaram um acordo para um enorme projecto de desenvolvimento industrial no mais importante porto português, em Sines, curiosamente a cidade natal de Vasco da Gama. Nos últimos meses a imprensa portuguesa tem noticiado interesses potenciais por parte das autoridades do porto chinês de Ningbo em adquirir uma posição importante no porto de Sines.

Investidores chineses adquiriram posições cruciais em empresas portuguesas antes consideradas “de interesse público estratégico”: a anteriormente pública companhia de electricidade EDP é hoje detida em 20% pelas ‘Três Gargantas’ (companhia chinesa de origem hidroeléctrica); interesses chineses adquiriram um papel indirecto importante na antes pública companhia petrolífera GALP; o fundo de investimentos chinês Fosun detém uma porção considerável do mais importante banco comercial português e controla a maior companhia privada de seguros no país.

No seguimento do anúncio feito pela administração Obama da suspensão da presença americana da base das Lajes situada no arquipélago dos Açores, de alto valor estratégico devido á sua posição atlântica a meio caminho entre velho e novo mundo, as autoridades chinesas manifestaram o seu interesse em investir em infraestrutura aérea e marítima nas ilhas.

E, em especial, para a China?

Se tivermos uma perspectiva global dos interesses chineses em Portugal, vemos que o essencial objectivo é o do acesso ao continente Europeu, através de infraestruturas de transporte mas também através de uma crescente presença em sectores estratégicos tais como a defesa, a finança, os seguros, energia e saúde.

Felix F. Seidler, membro do Instituto de Política de Segurança da Universidade de Kiel tem sido um dos académicos europeus a debruçar-se sobre este interesse chinês em Portugal, dando uma atenção particular à base militar nos Açores. Na sua opinião a pesada dívida portuguesa será um factor decisivo no desenvolvimento desta luta estratégica pelo controlo do país.

No entanto, e como parece ter escapado ao analista, uma posição de grande credor pode gerar riscos semelhantes à situação oposta de grande devedor. O enorme excedente económico alemão obrigou o sistema bancário do país a procurar destinos lucrativos para os seus fundos, e foi essa a razão dos investimentos de alto risco levados a cabo pelo Deutsche Bank e da situação crítica que enfrentou no ano passado.

A China acentuou a sua considerável influência na Alemanha através da posição recentemente adquirida pelo HNA (quase 10%) no Deutsche Bank, tornando a grupo chinês no maior accionista individual deste banco, e resolvendo os seus problemas de sobrevivência, a maior dor de cabeça das autoridades financeiras alemãs.

Desde Vasco da Gama aos nossos dias há muito em comum entre diferentes tipos de globalização; no entanto, os métodos mudaram dramaticamente. Seria bom para a União Europeia abrir os olhos para o que se passa enquanto ainda vai a tempo.

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