Com 35 anos de existência, o Serviço Nacional de Saúde apresenta sinais de degradação que dificultam os cuidados prestados aos utentes e as condições de trabalho dos profissionais, exigindo medidas de sustentabilidade do sistema e melhoria dos serviços.
Um dos indicadores da diminuição das condições no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é a demissão de dirigentes de vários hospitais públicos, ao longo dos últimos meses, justificados pela falta de meios para prestar um serviço de qualidade: Hospital do Litoral Alentejano, Garcia de Horta, Amadora Sintra, Centro Hospitalar de São João, Hospital de Santa Maria.
Segundo a professora associada da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Ana Escoval, os três principais problemas que afectam actualmente o Serviço Nacional de Saúde e que necessitam de rápida intervenção são a perda de recursos humanos qualificados e diferenciados, a tentativa de privatização destes serviços e a própria sustentabilidade financeira do SNS que está em risco e que poderia, no seu entender, melhorar com um modelo de gestão diferente. Solução apresentada também por Henrique Botelho, representante da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), para os problemas actuais do SNS: “uma forte aposta no aumento dos níveis de literacia em saúde que informe de forma competente, que dê transparência à gestão e ao desempenho das diferentes estruturas e que promova cada vez mais uma governação participativa que envolva os profissionais da saúde e os cidadãos seus destinatários. É fundamental que se compreenda e se explicite qual é o produto e o modelo de negócio em causa.”
População espera melhor resposta às necessidades
Quando questionados sobre a qualidade nos serviços de saúde prestados em hospitais públicos, a maioria dos portugueses classificaram a “dificuldade de acesso aos cuidados” e os “tempos de espera entre a marcação e realização de actos médicos” como aspectos negativos. Os dados são de um estudo apresentado pela Nova Information Management School (NovaIMS) em Março passado, no âmbito do projecto Saúde Sustentável [ver caixa]. Por outro lado, a maioria dos 552 cidadãos entrevistados no segundo semestre de 2014 deram nota positiva à qualidade dos profissionais de saúde e às infra-estruturas e equipamentos dos locais onde foram atendidos.
No que diz respeito à satisfação com os diferentes tipos de cuidados de saúde prestados em ambiente hospitalar, os inquiridos avaliaram vários aspectos em diferentes questões. O internamento é que mais se destaca com 89,5 % dos inquiridos a classificá-lo como positivo ou muito positivo, logo seguido pelos exames de diagnóstico (89%). As urgências são as que saem menos bem cotadas no campo da satisfação dos utentes, ainda assim com 64,5% a dar nota positiva ou muito positiva. Pelo meio ficam as consultas dos médicos de clínica geral ou familiar nos centros de saúde (82%) e as consultas externas de especialidade em hospitais públicos (81, 8%).
Na generalidade, o grau de satisfação dos inquiridos para com os cuidados recebidos no último ano através do Serviço Nacional de Saúde fica-se pelos 76,4%. Quanto às taxas moderadoras, 43,2% dos indivíduos entrevistados considera que não são adequadas.
Para além das queixas dos utentes, também os profissionais de saúde estão cada vez mais descontentes e vêem-se obrigados a emigrar para países com melhores condições de trabalho. Embora muitos profissionais aleguem falta de emprego, sobretudo no interior do país são frequentes as notícias de falta de médicos e outros profissionais de saúde.
Henrique Botelho tenta explicar este fenómeno justificando a opção dos clínicos portugueses com a falta de condições oferecidas pelo Estado: “A maioria dos responsáveis do governo da saúde têm tido uma enorme dificuldade e preguiça em compreender que trabalhar em zonas envelhecidas, deprimidas, carentes do ponto de vista socioeconómico, de grande dispersão demográfica, com cargas de doença bem acima da média do país e, por consequência, com cargas de trabalho por habitante também superiores, deveria implicar dispositivos de apoio, reconhecimento e incentivos distintos das regiões urbanas e litorais”.
A juntar à falta de incentivos para a mobilidade dos profissionais dentro do país, o representante da FNAM confessa ainda que os médicos são desvalorizados pelo SNS, embora elogiados pelos cidadãos que acompanham: “(os profissionais de saúde) têm sido irresponsavelmente maltratados e expostos, diria quase duma forma criminosa para a imagem e coesão dos serviços, como responsáveis pelas «falhas do sistema».”
SNS continua a ser preferido pelos portugueses
Apesar da deterioração das condições nos serviços públicos de saúde, os portugueses continuam a preferir aceder aos centros de saúde e aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Os dados apresentados são da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).
Em 2014, assistiu-se a 6,1 milhões casos urgentes, um aumento de 1% face ao número registado no ano anterior. O mesmo aumento registou-se nas cirurgias realizadas em hospitais públicos, o que significa mais 6.603 cirurgias que no ano anterior.
As consultas médicas não presenciais registam um aumento maior (1,3%) que as consultas presenciais (0,3%), resultado que reflecte, na opinião da ACSS, a maior flexibilidade e adequação às necessidades das populações.
Estas estatísticas vêm igualmente corroborar os dados obtidos pelo estudo da NovaIMS em que os inquiridos admitiram não deixar de recorrer aos cuidados de saúde em serviços públicos devido à desadequação das taxas moderadoras.
Custos acima da média europeia
A despesa do Estado com a saúde tem vindo a diminuir, diz o governo. Mas de acordo com um estudo de economista Eugénio Rosa, esta redução só é possível através da maior contribuição dos utentes para o SNS, diminuindo assim os custos suportados pelo Orçamento de Estado.
Segundo Eugénio Rosa, os custos do Estado com a saúde diminuíram cerca de 40% entre 2010 e 2014, passando de 13.874,4 milhões de euros para apenas 8.289,6 milhões. E, sublinha o economista, “numa altura em que se verifica uma crescente degradação dos serviços públicos de saúde em Portugal, consequência dos cortes brutais no financiamento do SNS, que o governo e o ministro da saúde Paulo Macedo têm procurado ocultar, interessa desmontar também esta mentira utilizada na propaganda oficial” referindo-se aos dados apresentados pelo estudo “OECD Health Statistics 2014: How does Portugal compare?”.
Este estudo da OCDE mostra como, por um lado em 2000, a despesa total (pública e privada) com a saúde representava 9,5% do PIB e a média nos países da OCDE era de 9,3%; por outro, em 2012, apenas 65% da despesa total com saúde foi financiada pelo Estado português, ano em que a média nos países da OCDE atingia os 72,3%.
No mesmo documento é possível constatar que entre 2000 e 2012, o valor no orçamento geral do Estado para a saúde diminuiu de 66,6% para 65% enquanto nos restantes países da OCDE a mesma despesa com saúde subiu de 71,4% para 72,3%. Enquanto, para o Estado, os custos diminuíam, a despesa da saúde era suportada directamente pela população, aumentando de 24,3% para 27,3% entre o mesmo período.
Tecnologia: Despesa ou investimento necessário?
A evolução da medicina nos tratamentos e diagnóstico de doenças deve-se em muito à tecnologia que está, indubitavelmente, cada vez mais presente no nosso dia-a-dia. Mas a tecnologia permitiu também à medicina melhorar a gestão dos seus serviços bem como centralizar a informação de cada utente e diminuir custos ao nível de logística. Processos em papel que passaram a ser electrónicos, a marcação de consultas que passou a poder ser feita online ou por telefone e diminui assim o tempo de espera, são alguns exemplos práticos que a tecnologia permitiu alcançar. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 50% de todos os avanços terapêuticos disponíveis hoje em dia não existiam há dez anos.
Contudo, a professora Ana Escoval alerta: “Apesar do reconhecimento da importância da tecnologia, é necessário que garanta não só resultados e ganhos em saúde, como que contribua para a sustentabilidade do SNS e não para a sua desfragmentação, facilitada pelo aumento da despesa”. Aviso também feito por Henrique Botelho, que refere: “A tecnologia em saúde destina-se a potenciar ganhos para os cidadãos. Em segurança, conforto, efectividade e, fundamentalmente, em resultados”.
Com o objectivo de melhorar o custo-beneficio dos equipamentos adquiridos, têm vindo a ser criados estudos sobre o impacto de novas tecnologias feitos por grupos que avaliam não só a sua funcionalidade clínica mas também o seu custo para a entidade interessada em comprá-la. É o caso do Grupo de Avaliação da Tecnologia, do qual Ana Escoval faz parte, criado em 2009 na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto de Avaliação de Tecnologia e Análise de Sistemas do Karlsruhe Institute of Technology da Alemanha.
Ana Escoval afirma que esta avaliação dos custos versus os resultados e vantagens que as tecnologias podem trazer, “é crucial para a compreensão do impacto da sua utilização para a população e para a despesa do SNS”.
A avaliação tecnológica em Portugal
Segundo um estudo de Carlos Gouveia Pinto e Luís Silva Miguel do Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa (CISEP), desde a década de 1990 que Portugal tem vindo a dar mais importância à promoção da eficiência das tecnologias adquiridas do que à contenção de custos.
Os investigadores referem que, embora sejam os administradores hospitalares os responsáveis pela gestão dos orçamentos das suas instituições, os profissionais de saúde têm um grande peso na escolha da adopção de novas tecnologias, sendo que estes têm acesso e consideram os estudos de avaliação das tecnologias para as suas decisões.
Ana Escoval corrobora estes dados ao referir que “depois de avaliados os seus custos e possíveis resultados, (as tecnologias) contribuem para a obtenção de melhores resultados em saúde, para respostas mais céleres e adequadas às necessidades da população e para a prestação de cuidados mais efectivos e com mais ganhos em saúde”.
Noutro estudo, realizado pela Euromet, a nível europeu, a maioria dos médicos inquiridos (75%) admitiu que os custos devem ter alguma influência e importância na escolha de tecnologia. Embora, confessem os profissionais, a restrição orçamental, o desvio de conclusões devido ao financiamento por algumas produtoras e a dificuldade em compreender sejam, por vezes, barreiras à utilização de estudos de avaliação de novas tecnologias.
Quanto aos factores que podem aumentar o uso destes estudos, os médicos inquiridos pela Euromet apontaram a formação em economia da saúde, a facilidade no acesso aos estudos e a relevância prática dos mesmos.
Para onde caminhamos?
Analisando a evolução do sistema de saúde português, um estudo desenvolvido por investigadores da ENSP em 2005, concluiu que é preciso um novo modelo do Serviço Público de Saúde e, sublinha Ana Escoval, essa necessidade mantém-se actual. Este novo modelo deve ser centrado na qualidade prestada pelos serviços à comunidade, na inovação, na antecipação e avaliação de resultados das medidas e estratégias tomadas.
Directrizes para melhorar o SNS |
Cuidados de saúde primários como verdadeira porta de entrada no sistema de saúde |
Descentralização e autonomia de gestão a nível local, com contratualização, responsabilização, avaliação e consequências |
Integração e articulação entre os diferentes níveis de cuidados |
Gestão integrada da doença |
Investimento na educação para a saúde e na literacia |
Planeamento local, regional e nacional articulado com as reais necessidades da população (estratégias locais de saúde) |
Política prospectiva de recursos humanos da saúde |
Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito, no cumprimento do que está estabelecido na Constituição |