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Quarta-feira, Novembro 27, 2024

O diabo em campanha

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Não há ironia nas linhas que se seguem e o cenário de aparente ficção procurou equilíbrios na mais dura realidade.

Para que existisse massa crítica e um corpo teórico – exigíveis mesmo num texto apressado e de tão reduzida dimensão, assegure-se que revisitámos alguns textos clássicos como amparo, embora as ideias que continham nem sempre fossem usadas, pelo carácter autónomo deste raciocínio.

Só para desabafo, olhamos com humildade para O Príncipe – ao magnífico Lorenzo filho de Piero de Medici, de Nicolau Machiavelli, de 1531, expressão de uma época, fonte onde ainda vamos colher algumas gotas e reconhecer que, por vezes, os legados são eternos e quase universais.

Depois, passámos os olhos pela Arte da Guerra, de Sun Tzu, um tratado escrito durante o séc. IV a.C., revendo os cinco fatores que o autor, preso dos limites da ciência militar, entende como prenunciadores de quem sairá vitorioso numa contenda, mesmo antes que ela ocorra. Finalmente, já na nossa época, olhamos com entusiasmo para o atrevimento de Noam Chomsky e seguimos com agrado – em Propaganda e Opinião Pública – a entrevista que deu sobre o tema a David Bersamim.

Ainda na contemporaneidade, espreitámos Nicholas O’Shaugnessy, o seu The Phenomenom of Political Marketing e esse clássico da observação dos factos que é O Diabo em Campanha onde Álvaro Vargas Llosa narra a campanha eleitoral para as eleições presidenciais que opuseram o escritor Mário Vargas Llosa (pai do jornalista que escreve o relato) e Alberto Fujimori, que o venceu. (Fujimori era um político neoliberal nipo-peruano que ocupou a presidência do Peru de 28 de julho de 1990 a 17 de novembro de 2000.

Em 2009 foi condenado a 25 anos de prisão por violações dos direitos humanos (onde se incluía a ordem para a esterilização forçada de 200 mil mulheres indígenas no Peru). A sua cela tem 100 mil metros quadrados, com sala de estudo, sala de jantar, quarto e casa de banho e ainda o direito a uma clínica permanente com três enfermeiros, dois médicos e uma ambulância, além de outras regalias).

Com algum entusiasmo recordámos apontamentos antigos das aulas de Comunicação Política e o velho (dos anos 90 do século XX) paradigma de H.O.N.: Honestidade, sobretudo. Ortodoxia, sempre. Negação das duas anteriores, para obter melhores resultados.

Cícero

Imagino: Marco Túlio Cícero chega ao nosso contacto enviando-nos uma SMS muito breve. Este número de telemóvel que usou como destino só existe para algumas pessoas e essas não o partilham facilmente. São normalmente políticos, secretários de Estado, assessores, chefes de gabinete e todos os jornalistas que mereçam a pena contactar. Alguns são da blogosfera, claro.

Cícero podia ter-me procurado na Agência de Comunicação mas, ao fazê-lo como o fez, evidencia secretismo ou pelo menos que impõe sermos discreto quanto àquilo que pretende.

Não precisamos de muito tempo para confirmar a sua ficha. Não é de boas famílias, mas a riqueza paterna assegura os honorários – e a disponibilidade para singrar. Dizem que é o maior orador que houve na antiga Roma. Não duvido.

Marcamos encontro num dos bares que são os nossos escritórios mais seguros.

O verdadeiro escritório de um Assessor de Comunicação está na sua agenda pessoal, nos seus telemóveis, nos lugares que frequenta quando tal é necessário. E no seu bar.

Cícero diz, logo que chega, que um verdadeiro romano bebe vinho, mas aprecia cerveja. E que os gladiadores reforçam a força bebendo um cocktail onde acrescentam cinzas ao álcool que bebem.

O ruído da música e o entrechocar dos copos garante privacidade. Saudamos Baco com um tinto da Península Itálica. Pedimos que a garrafa fique connosco. É o tinto mais caro do bar, mas isso só nos aproxima.

Cícero vem com muita ambição. Já o conhecemos bem, tem 42 anos, a idade certa para dar um passo em frente e para cima. Foi questor e pretor – postos menores, com alguma importância. E fez boa figura sobretudo porque domina uma arte em que os gregos eram exímios e a que alguns romanos se dedicam: a retórica.

Digo-lhe com alguma cautela que em política não chega falar bem. Dou-lhe exemplos de grandes oradores que não passam disso mesmo. E refiro que há trinta anos que nenhum cidadão que não descenda da nobreza é eleito cônsul.

Falo-lhe de redes sociais e ele confunde-as com relacionamentos. Com a mobilização de amigos. Com a imposição do voto aos grupos que podem exprimi-lo e, assim, elegê-lo.

A ideia de um homem um voto é-lhe repulsiva. Se lhe dissesse que além do Facebook temos pelo menos à nossa disposição o Ozone, a Sina Web, o Google+; o Tumblr, a Line, o Twitter, o WeChat…Ele não saberia do que estávamos a falar…

Constato que a Lei de Financiamento dos Partidos – e pormenores como esse – são-lhe completamente estranhos. Não está também habituado a assessores de comunicação política e deposita toda a sua confiança no irmão mais novo, um tipo colérico que parece, mesmo assim, ter um sentido prático muito grande. Evito falar-lhe da blogosfera e das redes sociais, da manipulação de fóruns das rádios e televisões, de condicionamento de debates e de evitar o pior em reuniões com “criadores de opinião”.

Trabalho sujo

Por vezes, é preciso um homem “de mão” que faça o trabalho sujo e dê a cara, que, mesmo com poucas habilitações literárias faça o papel da ponta de lança. Que use a crueldade – e a ignorância – a favor dos objetivos. Mas Cícero emenda: o irmão e ele próprio estudaram na Grécia, berço da melhor retórica. O irmão tem apenas o defeito de todos os temperamentais, é quase insuportável.

Gosto quando me diz que o irmão lhe recomendou não usar os assuntos políticos na campanha eleitoral. Devem ser evitados. Devemos selecionar tópicos, não os que nos favoreçam mas os que diminuam e fragilizem o adversário. Coisas que os eleitores entendam. Ou outras que os eleitores não entendam mas que pareçam urgentes pela sua dimensão e aparente importância. Nunca deve mentir – mas omitir o mais possível. E não se deve esforçar com a verdade, essa ficção do relativismo, mas apostar numa linha de pensamento que pareça credível. A retórica já ele domina, assegura. Dá-me exemplos do seu passado vitorioso. Aos vinte cinco anos ganhou o seu primeiro caso no Tribunal de Roma, repete inutilmente.

Mais importante do que uma notícia é fabricarmos uma notícia; mais importante que uma sondagem é difundirmos resultados de sondagens previamente tratadas. A opinião pública é o que a opinião publicada lhe sugere e inculca, num trabalho contínuo, subliminar. Os romanos chegaram a usar a estátua mutilada de Pasquino para deixar as suas queixas e ironias (assim nasceu o termo pasquim, jornaleco, publicação de má qualidade). Cícero nem ouve. Ressalta a importância de ser inescrupuloso. De aliciar os eleitores. De fazer e quebrar promessas. Veio ao sítio certo. É disso que tratamos, aqui.

É fundamental a criação da plataforma política. Uma boa plataforma eleitoral tem sido cada vez mais decisiva na hora da escolha dos votos. Levantamentos em relação à condição da região em que se vive ajudam no diagnóstico dos principais problemas destes locais. E consequentemente, auxiliam na criação de propostas de soluções destes problemas. Esta é a chave-mestra para captação de um maior número de votos, pela indução: quem vota identifica-se com o candidato e as suas ideias de ação, mesmo que mais tarde se diluam no esquecimento. As pesquisas também ajudam a identificar em que locais o grupo político (partido e alianças) são fortes. Saber os bairros, cidades e regiões em que se tem menos votos pode ajudar aos candidatos a se dedicarem mais para conquistar estes grupos de eleitores. Isto também vale para perfis de pessoas. É sempre bom saber quais são os grupos de pessoas que se identificam mais com o candidato. Isto também vai ajudar o grupo político a criar a plataforma eleitoral.

Cícero olha-nos como se falássemos hebreu ou mesmo semita. Tem outras ideias para o que vai fazer. Há só que conhecê-las e depois convencê-lo de outra coisa, deixando-o na ilusão de que as novas ideias partiram dele.

Sinais

Pergunto-lhe se tem uma marca, um sinal, um símbolo que o anteceda. Explico-lhe que no decurso de grandes acontecimentos de massas, nos pavilhões das feiras internacionais, nos congressos, nas grandes competições desportivas – mas também nos aeroportos e centros comerciais, nos hotéis, restaurantes e escritórios, nas próprias ruas, cruzamentos, rotundas e jardins – somos hoje confrontados/as com uma multidão de sinais de trânsito, placas de sinalização e sinalética comercial variada, cuja presença influi diretamente na vida das populações. Inevitáveis, mesmo imprescindíveis, tais sistemas de informação e orientação no espaço recorrem ao uso de pictogramas, i.e. de imagens ou signos figurativos utilizados para exprimir conceitos abstractos, comunicar ordens e/ou proibições. Essa linguagem pictográfica, longe de constituir uma espécie de «linguagem universal», intuitiva e de reconhecimento imediato, antes apresenta, pelo contrário, algumas importantes limitações.

Mas essa limitação pode ser definidora do candidato e usada a seu favor. Dou-lhe exemplos: a águia, a sigla SPQR, Senatus Populusque Romanus, conotada com o senado, os senadores e a própria Roma. Cícero não é criatura capaz de andar de bandeira em campanha, de oferecer aventais, de oferecer capacetes com crista à moda dos Tribunos, ou de andar com um pin na lapela com a bandeira da República.

Sem tom de acusação, chamamos a atenção para o facto de ser, afinal um estrangeiro – Cícero vem de fora de Roma, do sul, de uma cidade pequena, Arpium – e de precisar de esforçar-se não só rodeando-se de muitos acompanhantes mas usando daquilo que, só pra nós, chamaremos hipocrisia: das a ouvir a todos o que todos querem escutar, fingindo dar-lhes atenção particular e personalizada e importância ao que disserem. Nisso estamos de acordo e mesmo o seu irmão já lho havia dito.

Partimos otimistas para o que se segue: a campanha eleitoral. Muito mais porque os adversários não são de monta (os outros candidatos são fracos: António o Hybrid e Catalina, e será fácil constituir uma boa base de apoio e motivar os descontentes.

Nas despedidas pergunto-lhe pela família. A mulher anda adoentada, mas isso pode ser um trunfo. Os filhos são irreverentes, mas obedecerão nem que seja pela força. É fundamental passar essa imagem: a família é uma boa base para a imagem do candidato.

Temos mais reuniões a seguir e uma campanha para desenhar. Despedimo-nos com uma saudação onde há vitória e confiança. Ave Cícero.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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