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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A nova aliança indo-americana

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

De certa forma, podemos considerar a eleição de Narendra Modi em 2014 como o primeiro exemplo de uma onda dita ‘populista’ que cresceu em todo o mundo democrático nos anos recentes, e de que Donald Trump é agora o representante mais conhecido.

1. Narendra Modi e Donald Trump

De certa forma, podemos considerar a eleição de Narendra Modi em 2014 como o primeiro exemplo de uma onda dita ‘populista’ que cresceu em todo o mundo democrático nos anos recentes, e de que Donald Trump é agora o representante mais conhecido.

Narendra Modi é um homem do povo, de casta inferior, vendedor de chá numa estação de comboio que subiu a pulso até ao mais alto nível do Estado. Ele tem uma linguagem popular; ouve as preocupações das pessoas e aborda as suas aspirações.

Um momento alto no seu compromisso de combate à pobreza deu-se com o seu primeiro discurso oficial no dia nacional da Índia e a sua franqueza em levantar um assunto como a inexistência generalizada de instalações sanitárias no país, foi uma mensagem tão histórica e tão poderosa que eu acho que merece ser lembrada três anos mais tarde:

(…) estamos no século XXI. Nunca pensaram no que passam as nossas mães e irmãs que têm que fazer as suas necessidades a céu aberto? A dignidade das mulheres não será a nossa responsabilidade colectiva? As mulheres pobres da aldeia têm que esperar pela noite; até que a escuridão desça, para poderem fazer as suas necessidades. Que tortura corporal, elas deverão estar a sentir, quantas doenças não resultarão dessa situação? Porque não podemos simplesmente construir

as casas de banho que assegurem a dignidade das nossas mães e irmãs? (…), poderão alguns pensar que um grande festival como 15 de Agosto é uma ocasião para falar de grandes coisas. (…) falar de grandes coisas é importante, fazer promessas também é importante, mas às vezes quando se fazem promessas, criam-se expectativas, e quando essas expectativas não se materializam, a sociedade afunda-se num estado de desânimo. É por isso que eu sou a favor de dizer estas coisas, que nós temos a possibilidade de fazer cumprir. (…), porventura estão chocados por ouvir o vosso primeiro-ministro a falar de sanidade e da necessidade de construir casas de banho a partir das muralhas do Forte Vermelho.

(…) não sei como é que o meu discurso vai ser avaliado e como as pessoas o vão tomar em consideração. Mas esta é a minha convicção sincera. Venho de uma família pobre, sei o que é a pobreza. Os pobres precisam de respeito e esse respeito começa pela higiene. Sinto-me portanto obrigado a lançar uma campanha ‘ Índia limpa’ a começar do dia 2 de Outubro deste ano e para durar quatro anos. Eu quero dar o primeiro passo hoje e isto quer dizer – que todas as escolas do país devem ter casas de banho separadas para as meninas. Só então as nossas filhas deixarão de ser obrigadas a deixar as escolas antes do tempo.”
(tradução do autor)

Modi traz com ele uma oposição visceral à elite encarnada pelo clã familiar que governou o país a maior parte do tempo desde a independência, bem como a sua visão, seus costumes e a sua ‘correcção política’.

Em todo o caso, ele teve o cuidado de envolver o funcionalismo público na sua política, não o tornando responsável pelas eventuais falhas de execução anteriores. Por outro lado, ele tem promovido campanhas (como esta a que alude o discurso) sem jamais lançar qualquer reforma radical. Modi é um nacionalista e cultiva a cultura e os valores conservadores indianos. Nas grandes opções políticas internacionais, ele continuou a estratégia política traçada pelos seus antecessores desde os anos 1990.

O perfil populista de Donald Trump tem diferenças claras com o de Modi; contrariamente a este, ele não pode pretender ter sido pobre e a sua imagem ‘antissistema’ não é inteiramente genuína; mas usa a mesma linguagem popular e conseguiu assumir a mesma desconfiança popular pelas elites políticas. Contrariamente a Modi, um homem solteiro com uma imagem ascética, a família de Trump tem estado ainda mais em evidência do que as dos clãs de Bush e Clinton. Por outro lado, para o tipo muito específico de populismo dos EUA, ser rico não é um problema, mas pelo contrário, e isso é ainda outro contraste com Modi. Em todo o caso, tal como Modi, Trump foi eleito por um importante segmento da população mais pobre, que não vai perdoá-lo se ele não conseguir dar resposta às suas aspirações.

Donald Trump partilha com Narendra Modi da mesma postura nacionalista e faz apelo a alguns valores conservadores, mas tem agido como um elefante numa loja de porcelana no domínio das relações diplomáticas ou nas suas relações com instituições nacionais como o FBI ou os magnatas da comunicação social, enquanto Narendra Modi tem cultivado um estilo mais sóbrio nesses domínios.

Apesar das diferenças, acho que o que permanece em comum entre os dois líderes das duas maiores democracias do mundo pode ser suficiente para que uma aliança que sempre existiu na sua forma potencial possa desabrochar com renovado vigor.

2. A transformação de um entendimento comum em poderosa aliança

No xadrez geopolítico da guerra fria, o Paquistão era suposto bloquear o acesso soviético ao Índico e a retórica de “não-alinhamento” indiana era altamente suspeita de ser uma forma camuflada de aproximação ao bloco comunista.

A situação mudou totalmente após a queda da cortina de ferro e do redireccionamento do alvo do jihadismo no sul da Ásia, da União Soviética para os EUA. As mesmas redes jihadistas que costumavam atacar os “infiéis indianos” promovem agora também ataques terroristas contra “o grande Satã”. Por outro lado, tanto a Índia como os Estados Unidos trabalham para a viabilidade de um estado não-islamista no Afeganistão, contra os mesmos inimigos.

A base objectiva para uma aliança EUA-Índia era portanto sólida, mas independentemente das boas intenções anunciadas, a aliança nunca realmente se materializou, e os EUA mantiveram uma política absurda de sustentar tanto aqueles que promoviam o jihadismo, como o Paquistão, como aqueles que o confrontavam, como as autoridades afegãs.

Finalmente, a situação está a evoluir favoravelmente, entre outras coisas porque a Rússia e a China ainda parecem valorizar mais a capacidade dos talibãs para combater os interesses dos EUA que os perigos que o jihadismo coloca aos seus próprios interesses.

Os avanços imperiais chineses no mar do Sul da China, bem como a sua pressão contínua em várias das suas fronteiras terrestres, incluindo as que tem com a Índia, preocupam tanto a Índia como os EUA, de forma que contribui para aproximar os dois países.

Por outro lado, há também uma agenda económica importante que liga os dois países. Donald Trump fez muito da sua campanha eleitoral referindo-se ao défice da balança comercial dos Estados Unidos e o que é percebido como a resultante desindustrialização do país. Narendra Modi quer superar as fragilidades da economia indiana, fragilidades que passam pelas contas externas, mas compreendem também a necessidade de reforçar o investimento externo.

Embora me pareça que as percepções de ambos os líderes não tomam em devida conta vários factores económicos importantes em ambos os países, penso que eles têm razão em atribuir às contas externas um papel decisivo.

A cumplicidade entre os dois líderes em evidência na recente visita do primeiro-ministro Modi aos Estados Unidos tem uma base objectiva feita de interesses comuns.

Fazer com que esta aliança se materialize em acções comuns é agora um dos maiores desafios que os dois líderes enfrentam.

 

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