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Terça-feira, Novembro 5, 2024

52.º Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

Retratos de um mundo triste

Escrevo este texto quando foram já exibidos seis dos doze filmes presentes, em competição, na secção oficial.  Se a seguir se fala de obras de ficção, esta é de tal forma agarrada à realidade que quase diríamos estar a falar de documentários. E o retrato que dão do mundo em que vivemos  é triste e preocupante.

Mundo triste

Corporate

Corporate, de Nicolas Silhol

O maior destaque dos trabalhos já apresentados vai para Corporate, a primeira longa metragem do jovem realizador francês Nicolas Silhol. Lambert Wilson e uma excelente Céline Sallette protagonizam uma história dramática vivida numa grande empresa multinacional. Uma empresa como muitas que existem em França ou em Portugal com muitos programas de ‘coaching’,  ‘team building’, ‘gestão do stress’, ‘inteligência emocional’, ‘empowerment’ e outros que tais, que suportam programas de reestruturação que terminam sempre na redução do número de efectivos e que têm como objectivo ‘a criação de valor para o accionista’.

Como se diz no genérico do filme os nomes são fictícios mas as situações são reais.  Na base do argumento, a vaga de suicídios de trabalhadores que ocorreu há poucos anos na France Telecom. Em Corporate assiste-se também ao suicídio de um trabalhador e  à progressiva mudança de posição da responsável de ‘recursos humanos’ inicialmente completamente alinhada com a gestão de topo e finalmente demarcando-se dela quando constata estar-lhe reservado o papel de bode expiatório.

Embora com algumas debilidades, Corporate é um filme com uma carga política importante e que será importante que chegue em breve a Portugal. Já estreou em França com grande impacto nos meios sindicais e laborais e promovendo o debate sobre as mudanças em curso no ‘código de trabalho’.

Aritmiya

Aritmiya, de Boris Khiebnikov

Entretanto, da Rússia, passou Aritmiya realizado por Boris Khiebnikov. Um paramédico que trabalha numa ambulância de emergência médica vive um momento de crise no casamento. A mulher é médica no hospital e as dificuldades do casal para ultrapassar a sua situação particular tem como pano de fundo as mudanças que uma gestão economicista introduz no atendimento aos doentes e sinistrados com graves prejuízos para estes e para os trabalhadores das ambulâncias.

Sem deslumbrar, Aritmiya é um filme que parte de um caso de dificuldade de relacionamento de um casal para alargar o seu âmbito a alguma crítica social e política.

História recente da ex-Jugoslávia e da Geórgia

Capítulos da história recente da ex-Jugoslávia e da Geórgia, são tratados noutros dois filmes em concurso.

Men don’t cry

Men don’t cry, de Alen Drljević

Men don’t cry é uma co-produção entre a Bósnia-Herzegovina, a Eslovénia, a Croácia e a Alemanha, realizada pelo bósnio Alen Drljević. Um grupo de veteranos da guerra dos balcãs, oriundos dos vários países que resultaram da desintegração da Jugoslávia, reunem-se num albergue semi-abandonado para, muitos anos depois do final do conflito, fazerem sessões de terapia de grupo procurando, desse modo, exorcizar muitos dos seus fantasmas.

Khibula

Khibula, de George Ovashvili

Menos interessante, Khibula de George Ovashvili, que em 2014 foi o vencedor de Karlovy Vary. Aqui  assiste-se ao relato do périplo por várias aldeias das montanhas da Geórgia do primeiro presidente eleito após a separação da URSS, entretanto deposto por um golpe apoiado pelos russos.  Acompanhado por um grupo de correlegionários, Zviad Gamsakhurdia refugia-se em casas pobres das aldeias evitando a todo o transe sair do país.

Para além da beleza das paisagens, o filme diz-nos pouco de um homem que é apresentado como um tipo místico e que aprecia o culto da personalidade. Ficamos sem saber o seu ideário político. Somos informados que foi democraticamente eleito e posteriormente deposto. Mais nada. Khibula será um filme que dirá muito aos georgianos, mas provavelmente só a eles.

Tráfico de refugiados

Ainda menos interessantes os outros dois filmes concorrentes. Em comum o tráfico de refugiados.

The Line

The Line / Čiara, de Peter Bebjak

The Line / Čiara é uma co-produção eslovaca-ucraniana dirigida por Peter Bebjak. A mafia transposta para a fronteira entre a Eslováquia e a Ucrânia. Contrafacção, contrabando, traição, corrupção policial, luta das ‘famílias’ pelo controlo dos negócios são alguns dos ingredientes de um filme em  que a violência é uma constante.

More

More / Daha, de Onur Sazlak

More / Daha é um filme turco de Onur Sazlak. Um jovem pretende ir estudar para Istambul mas o pai prefere que ele o ajude num negócio de tráfico de refugiados que tem como ponto central a cave de uma casa situada numa colina nas margens do mar Egeu. A intransigência do pai leva a uma mudança da personalidade do rapaz e a uma radicalização das posições de ambos. A esquecer.

O outro lado da esperança

Para compensar há um último de Aki Kaurismaki numa das secções paralelas: O outro lado da esperança. Esse, com o seu humor minimalista, sabe fazer filmes sobre refugiados com mensagens humanistas, solidárias e com esperança no futuro. Arrisca-se a ficar fora de moda, com muita pena nossa.

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