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João de Sousa

Terça-feira, Novembro 5, 2024

A justiça, por outros meios

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

O processo Marquês fez quatro anos.  Durante estes anos, o Ministério Público deteve, prendeu, promoveu uma violenta campanha de difamação contra os visados e violou os prazos máximos de inquérito previstos na lei. Quatro anos passados, nem acusação nem arquivamento. A detenção e o espetáculo mediaticamente encenado constituíram um abuso. A prisão preventiva foi usada para fins estranhos à lei – para humilhar, para despersonalizar para investigar. A campanha de difamação foi criminosamente promovida por agentes estatais e protegida pelo encobrimento das próprias instituições. A violação continuada dos prazos máximos de inquérito pôs em causa a garantia jurídica básica de ter um limite temporal durante o qual o Estado pode considerar um cidadão suspeito. É certo que algumas destas violações já tinham ocorrido noutros processos, mas em nenhum outro ocorreram todas ao mesmo tempo, todas no mesmo processo. É isso que torna este processo excepcional.

Prazos

O debate sobre prazos dá-nos uma boa visão sobre os princípios que hoje orientam  o debate na nossa justiça penal. A teoria geral dos prazos indicativos é talvez a mais grotesca e cínica teoria geral de sacrifício de direitos individuais e constitucionais a favor do  autoritarismo do poder estatal. Primeiro: o nosso código de processo penal refere-se não a um prazo de inquérito, mas a um prazo máximo de inquérito. Em nenhum outro código se fala de prazo máximo, mas em prazos. Ora, sendo esta a área mais delicada da justiça, onde se joga a liberdade individual, qual a razão para que seja esta a única esfera jurídica em que se pretende que os prazos não sejam imperativos? Segundo: se são indicativos, afinal, indicam o quê? Silêncio. Na verdade, o que se pretende é que não indiquem nada – que não haja prazo nenhum. O inacreditável e paradoxal argumento parece ser que a autonomia do Ministério Público impõe que este se liberte das amarras, não de qualquer influência do poder político, mas da própria lei, razão de ser da sua existência institucional. A questão dos prazos de inquérito “indicativos” não passa de usurpação de poderes: ao transformar a lei em mera sugestão, a direção do Ministério Publico substitui-se à Assembleia da República, fazendo ela própria a verdadeira lei. O império da lei substituído pelo império da vontade.

Para alguns, tudo isto é assunto de secretaria. Mera discussão de meios, que cede perante a importância do fim – o combate à corrupção e o apuramento da verdade. Meios, dizem. As garantias individuais deixam, pois, de ser fonte legitimadora do processo penal e passam a ser vistas como relíquias formais ultrapassadas que devem curvar-se ao desígnio da “eficácia” das investigações. Gostaria, no entanto, de recordar que, ao falar de Estado, são exatamente os meios que o definem e lhe dão identidade. O meio espúrio corrompe e deslegitima seja que fim for. Quando um Estado recorre a meios extraordinários e imprevistos contra o individuo o que está a dizer é que nem a lei nem o direito o travam – afinal, somos nós que ditamos o que é norma e o que é exceção. E quem define a exceção é, de facto, o soberano.

Na verdade, a indecência do incumprimento dos prazos só se explica pela falência das suspeitas e pelos factos e as provas que, no processo, as desmentem. Amarrados ao embuste original, o que pretendem é acusar seja lá com o que for, mudando de imputações, cada uma mais absurda que a anterior. Feito o que fizeram, e do modo como o fizeram, não acusar seria condenarem-se a si próprios. 

Quem olha para o que aconteceu, há muito que deixou de reconhecer neste processo uma qualquer investigação séria e independente para ver nele a clássica perseguição a um alvo, a ideia kafkiana de uma “jaula que parte à procura de um pássaro“.

Em 2015, o mundo comemorou o aniversario dos oitocentos anos da Magna Carta que, com a linguagem da época, consagrou o princípio fundador do direito moderno – o principio da presunção de inocência. Hoje esse princípio parece ter sido entregue nas mãos discricionárias das “fugas” de informação e do establishment mediático. A ideia parece ser, então, a de condenar sem julgamento, condenar sem provas, condenar sem sequer existir acusação,  pretendendo, assim,  justificar a violência e o abuso cometido.  A única ideia que recusam é a da inocência, já não a da sua presunção, mas da simples possibilidade de assim poder ser. Já não bastava a ideia de guerra como a política por outros meios, temos agora a ideia de justiça por outros meios.

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