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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

A falência da nossa consciência

Pedro Pereira Neto
Pedro Pereira Neto
Académico. Ensina comunicação e jornalismo.

O sistema político português, no seu desenho autofágico, na vergonha alheia que suscitam os seus agentes, no grau primário de literacia que promove e em que se conforta, constitui uma das mais deprimentes ilustrações da degenerescência da espécie. 

Abordá-lo sequer é, já, um acto que conspurca e polui. E nós, a audiência do burlesco, não lhe somos melhores: o que nos diverte e indigna sublinha a nossa cumplicidade com a circunstância, que talvez com mais mérito deva ser considerada ontologia.

Da parte de quem elege, uma disponibilidade nula para criticar ideias próprias e ou as das formações ideológicas a quem seguem de forma bovina e clerical. Em igual sentido, não apenas um desconhecimento absoluto dos fundamentos de ideias novas, mas uma verdadeira aversão a descobrir a própria existência delas, possível fusão do conformismo do conhecido com a interiorização de uma censura ao diferente. Adere-se, vota-se, defende-se com a mesma irracionalidade com a qual se celebra um clube desportivo ou uma bebida alcoólica. Andamos, já não com a cabeça entre as orelhas, mas com uma surdez selectiva voluntária que as tornou decorativas.

Da parte de quem representa, sobressai a endogamia consanguínea auto-laudatória de grupelhos de crianças-adulto, alimentadas a ignorância histórica e desonestidade intelectual, às quais não auxilia qualquer réstea de potencial cognitivo senão para jogos internos mediaticamente amplificados de fratricídio, espécie de jogo da glória nivelado pelo mais visceral e primitivo, mas com a gravata adequada à respectiva predestinação ‘profissional’. Não é discernível nesses grupelhos qualquer renovação de ideias, substituído que foi há muito o debate da substância pela ilusão do domínio do processo discursivo: gritando mais alto ou colocando melhor a voz, ensaiando os gestos certos com que simultaneamente se risca o ar e o carácter, sobra sofismo onde definha a filosofia, perfeitamente em linha com um tempo onde interessa mais saber fazer que questionar e justificar o conteúdo feito.

À ascendência desta prototipia de pessoas menores corresponde o nojo e afastamento progressivo de anteriores quadros e da experiência moral que o seu contributo antes garantia. Não surpreende, esse afastamento: não é tanto a sua experiência a desaparecer, mas sobretudo a capacidade de ponderação do ridículo e dos efeitos da sua exposição – quem nunca teve outro palco que o da juventude partidária dificilmente poderia ter uma censura que nunca verdadeiramente conheceu, ou a dívida moral para com as pessoas perante as quais se responde, a quem se reduz ao abstracto tecnocrático de “os portugueses isto e aquilo”.

Quem, no passado e no presente, pudesse aspirar a encontrar em espaços de reflexão comunicacional algum sentido crítico, algum pejo na valorização dos eventos e da sua relevância individual e colectiva, encontra hoje no seu lugar empresas ideologicamente comprometidas pela conveniência do retrato da sua produção, reduzida a termos de uma suposta neutralidade técnica (os “conteúdos”) e à maleabilidade de carácter das respectivas direcções redactoriais. Estamos já muito para além da suspeita de que constituem instrumentos de poder ou de produção de enquadramentos políticos convenientes: o campeonato que hoje disputam, privado de critério cívico, é o do equilíbrio entre a abjecção e o crime.

Que sobra? A lira de Nero, este nojo divertido das chamas com acompanhamento musical, o critério que dança, deixando no ar a dúvida sobre de que lado do ecran se simula mais a realidade. E não é sem tristeza e amargura que tal diagnóstico se oferece: move-as a certeza de que nada de verdadeiramente bom surge sequer no calendário, quanto mais no horizonte. Rimos, injuriamos os carros alegóricos, apontamos a inadequação das proporções das figuras sobre eles instaladas, esquecendo nesse gesto serem o reflexo do tudo o que permitimos que elas sublinhem a respeito da falência da nossa consciência.

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