Na sequência dos atentados de 13 de Novembro em Paris, os governos multiplicaram as declarações de guerra e apelos a respostas militares, enquanto os serviços de inteligência atribuíam às revelações de Edward Snowden e à disseminação de comunicações criptografadas, responsabilidade pela capacidade dos terroristas em manter em segredo os seus planos.
Os ecrãs de televisão passaram a alternar directos sobre o choque e o luto nas ruas da capital francesa com as imagens da resposta imediata do governo. Dois dias após os ataques que mataram 129 pessoas e deixaram centenas de feridos em paris, aviões franceses bombardearam Raqqa, a cidade no norte da Síria que é uma das bases principais do autoproclamado “Estado Islâmico”.
O presidente francês, François Hollande, advertiu que o seu país seria “implacável” em todas as frentes, “no interior como no exterior”, face àquilo que classificou de “acto de guerra cometido por um exército terrorista”.
Ainda não tinham passado três dias depois dos ataques em Paris e da operação das forças anti-terroristas francesas em Saint-Denis, e eis que a questão da criptografia das comunicações electrónicas foi relançada nos Estados Unidos. Em declarações à CBS News o ex-vice-director da CIA, Michael Morell, exigiu “um novo debate público” e não hesitou em responsabilizar Edward Snowden, o ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA que tornou públicas informações sobre vários programas de espionagem que constituem o sistema de vigilância global da Agência de Segurança americana. Os atentados de Paris deram a Morell a oportunidade ideal para fazer ecoar pelo mundo aquilo que tinha já afirmado no seu livro que recentemente publicado, “The Great War of Our Time: The CIA’s Fight Against Terrorism From Al Qa’ida to ISIS”, no qual tinha acusado Snowden de ter dado uma ajuda preciosa ao “Estado Islâmico”, pois as suas revelações levaram muitas empresas digitais a melhorar a segurança das suas infra-estruturas e serviços. A deixa foi retomada pelo actual diretor da CIA , John Brennan, durante um debate no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, e por Jeb Bush, o candidato à nomeação republicana para a presidência dos Estados Unidos em 2016, que pediu o restabelecimento dos poderes da NSA, aludindo à recente decisão de limitar o programa de recolha de metadados telefónicos em território norte-americano.
A controvérsia sobre a comunicação codificada foi reactivada em 2014, com o reforço do sistema de criptografia de dados em smartphones com iOS (Apple) e Android (Google). O procurador de Paris Francois Molins, acusou os novos telemóveis de “cegar a Justiça” e propôs que os operadores sejam forçados a criar um dispositivo que dê acesso aos dados necessários para as investigações judiciárias. Algum tempo depois, o primeiro-ministro britânico David Cameron apontou os canhões contra o sistema de mensagens criptografadas “end to end”, como Facebook Messenger, snapchat, iMessage ou WhatsApp.
Numa entrevista recente à euronews, Jamie Shea, especialista da NATO em matéria de novas ameaças à segurança, defendeu que o debate em curso sobre o equilíbrio entre o direito do indivíduo a ter as suas comunicações criptografadas e o direito do Estado a ter acesso a essas informações deve ser, depois dos atentados de Paris, resolvido a favor de menos privacidade em nome de mais segurança.
Na terça-feira que se seguiu aos ataques de Paris, Richard Burr, presidente da comissão de dados e vigilância do Senado dos EUA, não hesitou em afirmar que os jihadistas que tinham perpetrado os atentados na capital francesa usando nas suas comunicações uma criptografia “end-to-end”.
As notícias que vão emergindo depois de Paris não parecem porém querer confirmar esta tese que liga os terroristas à criptografia. Nem os atentados de Paris nem o ataque dos extremistas islâmicos na Bélgica em Janeiro. Depois da intervenção em Verviers, na província de Liège, a polícia belga disse que os elementos da célula terrorista usavam “comunicação aberta”, e que os dados dos seus smartphones não foram criptografados. As autoridades belgas interceptaram as comunicações entre eles por meio de um dispositivo de escuta. Abdelhamid Abaaoud, considerado o chefe da célula terrorista de Verviers e o mentor dos ataques em Paris, estava a dirigir por telefone da Grécia a operação terrorista frustrada pela intervenção das unidades especiais da polícia belga (CGSU).
A criptografia de comunicações tem sido utilizada na propaganda do “Estado Islâmico” (em particular, a plataforma Telegram, criado pelo irmãos Durov, usada para reivindicar os ataques em Paris a partir da Síria e o ataque contra o avião civil russo no Sinai), mas não foi usada na realização dos ataques.
Segundo um documento publicado em Maio pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, Department of Homeland Security), aqui em pdf, as estratégias usadas pelos terroristas da célula terrorista belga para evitar que as suas comunicações sejam interceptadas consistem em mudar frequentemente de cartão SIM e falar em código.
Foi graças aos dados extraídos de um telemóvel encontrado num caixote do lixo próximo da sala de espectáculos Bataclan, que a polícia francesa encontrou o hotel no subúrbio parisiense de Alfortville (Val-de-Marne), onde os terroristas terão preparado os ataques. Nesse telemóvel as equipas de investigação encontraram um mapa detalhado do interior da sala de concertos e a mensagem “On est parti on commence” que terá precedido os ataques. Finalmente, foi através de geolocalização e de testemunhas oculares, que as autoridades francesas chegaram ao rasto de Abdelhamid Abaaoud, o estratega de Paris e do atentado frustrado na Bélgica.
Abaaoud, “cérebro” e estratega destes atentados não parece ter sido afinal a mente brilhante nem o 007 jihadista que alguns têm feito dele. O super-terrorista perdeu um telemóvel na Síria que estava cheio de imagens não criptografados e de vídeos. Foi este telemóvel que um simpatizante do Exército Livre da Síria entregou ao jornalista Etienne Huver num campo de refugiados na Síria no ano passado. Algumas das imagens e vídeos foram mostradas durante uma entrevista a Huver para a televisão belga RTBF. O conteúdo do telefone do homem mais procurado na Europa incluiu cenas de Abaaoud em poses de cowboy-terrorista (“turista-terrorista”, como dizia), e ao volante de um jipe que arrastava os corpos de combatentes do Exército Livre da Síria que tinha acabado de massacrar com os seus camaradas jihadistas.
Numa entrevista à “Dabiq”, a revista do “Estado Islâmico”, Abdelhamid Abaaoud gabou-se de que o seu “nome e fotografia estavam em todos os noticiários e apesar disso estive no território deles a planear operações contra eles, e saí em segurança sempre que se tornou necessário”.
“Remover todos os carros da estrada, todos os iPhone de todos os bolsos e todos os aviões do céu não faria nada contra o terrorismo. O terrorismo é uma questão de fim e não de meios. O terrorismo não se alimenta da tecnologia, mas da raiva e da ignorância que fecham as mentes”, diz Nadim Kobeissi, especialista em comunicação codificada do Instituto francês de Pesquisa Informática INRIA.
Nos atentados de Paris perderam a vida 130 pessoas, entre as quais o português Manuel Colaço Dias e ficaram feridas cerca de 350. Talvez antes de nos encherem os ecrãs de televisão de caças bombardeiros e drones e nos pedirem que renunciemos à privacidade nas nossas comunicações, como resposta à tragédia que atingiu gente que não encomendou guerra nenhuma, os governantes da Europa e Estados Unidos devessem começar por nos explicar como é que uns quantos jovens mal preparados conseguem nas barbas da polícia e serviços secretos preparar este tipo de atentados. E já agora, qual é o contributo nisto tudo do negócio das armas (a França é o quarto maior vendedor mundial) e os jogos de poder em torno do petróleo e do gás, que são desde há muitas décadas duramente pagos pelas populações do Médio Oriente.