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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Memórias cinéfilas – “Vejam bem que não há só gaivotas em terra…”

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

José Cardoso e José Afonso, o Cine-Clube da Beira e o cinema de Moçambique.Em Setembro de 1987 decorria o 16.º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz. Na vasta lista de filmes a concurso estavam obras de Gleb Panfilov, Derek Jarman, Bergala, Reichenbach, Carlos Diegues, João César Monteiro, Margarida Gil e muitos outros, entre eles, José Cardoso que vinha apresentar “O Vento sopra do Norte” a primeira longa-metragem de Moçambique, nação independente.

O Vento sopra do Norte

O filme passava-se em 1968, em plena ‘guerra colonial’ ou ‘luta de libertação’, numa pequena localidade do sul de Moçambique longe dos palcos das maiores confrontações, mas onde aos colonos chegavam ecos, rumores e boatos angustiantes. O desejo de vingança dos jovens moçambicanos, a intensificação da repressão colonial, o sentimento de culpa de alguns colonos e o bom senso e moderação dos “velhos” perpassam por esta obra, baseada numa crónica de jornal, que retrata uma situação após quatro anos de uma guerra que ainda não tinha chegado a metade. Estava-se a seis anos do “25 de Abril”.

José Vieira Marques tinha entrevistado o realizador José Cardoso no Festival de Moscovo em Julho desse mesmo ano de 1987 e, de imediato, convidou-o a estar na Figueira.

Nessa altura eu era um ainda jovem frequentador do Festival mas já tinha no currículo a presença em doze edições e escrevia uns textos nas publicações do movimento cineclubista e num jornal da imprensa regional, o “Correio de Azeméis”. Daí, a ousadia de interpelar o José Cardoso na esplanada do ‘Nicola’ e satisfazer a curiosidade sobre o passado do senhor.

José Cardoso nasceu em…

Fiquei então a saber que ele tinha nascido em Figueira de Castelo Rodrigo em 1930 e, órfão de pai e mãe, foi com um tio para Moçambique, ainda antes dos 10 anos de idade. A viver na cidade da Beira veio a ser técnico de farmácia durante 32 anos.

Aí perguntei-lhe se conhecia o meu primo João Almiro, hoje nonagenário, farmacêutico e um extraordinário filantropo. José Cardoso tinha trabalhado na farmácia do meu primo! (Mais tarde perguntei ao Dr. João Almiro pelo José Cardoso e ele logo me respondeu: “Ah, o maluquinho do cinema… Era um óptimo funcionário mas estava sempre à espera do final do dia de trabalho para ir para o Cine-Clube e para os filmes…”).

E lá continuou a conversa sobre o trabalho persistente e resistente do Cine-Clube da Beira no tempo colonial, a paixão de fazer filmes (em circunstâncias muito difíceis, quer políticas, quer pela escassez de meios,…) e sobre as experiências do período pós-independência: os filmes do moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, a efémera mas marcante passagem de Jean-Luc Godard por Moçambique,

a fundação do Instituto Nacional de Cinema e do trabalho  nele desenvolvido ao nível da formação técnica (com apoio cubano) e da criação, as experiências de “cinema móvel”, …

De muita coisa falei com José Cardoso nessa tarde mas houve algo que ele não me disse e que só neste ano de 2017, na passagem do 30º aniversário da morte de José Afonso, tive conhecimento através de generosas contribuições no ‘facebook’ (sim, também as há…).

Vejam Bem”, de José Afonso

Fiquei a saber que, primeiro João Afonso dos Santos e depois o seu irmão José Afonso, colaboravam nos anos 60 com o Cine-Clube da Beira e que “Vejam Bem”, uma das canções do álbum “Cantares do Andarilho” (1968), cantada habitualmente, e durante anos,  em tudo o que fosse encontro de jovens mais ou menos desafectos ao regime fascista (agora rebaptizado por alguns como “regime autoritário”) tinha sido tema musical e ‘leitmotiv’ do primeiro filme de ficção de José Cardoso: a curta-metragem “O Anúncio”, a história de um homem à procura de emprego, e na qual o realizador faz também o papel do protagonista, um tipo com ar esfomeado e com uma vida difícil – “dorme à noite ao relento na areia…”  e  “não há quem lhe queira valer”.

E aqui fica uma memória que liga José Afonso e a sua música ao cinema e a Moçambique e com a qual quis evocar um cineasta autodidacta (aprendeu cinema através de livros e dos filmes de super 8 e de 16 mm que foi realizando), generoso e determinado, que deixou uma marca indelével na História do cinema da pátria que o adoptou.


José Cardoso morreu em Outubro de 2013.

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