Mais ou menos pela calada das férias, como sempre convém nestas questões, foi publicada em 18 de Agosto último, para entrar em vigor 30 dias depois, a Lei nº 83/2017, relativa às novas medidas do invocado combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.Supostamente para transpor para a nossa ordem jurídica normas comunitárias sobre aquelas matérias[1], a dita lei altera em vários pontos o Código Penal e o Código da Propriedade Industrial. Mas sobretudo trata de modificar e mesmo de aniquilar o segredo profissional dos Advogados e de os procurar tornar denunciantes dos cidadãos que eles representem e informadores das polícias e do Ministério Público.
Invocando pela undécima vez a legitimidade dos fins (no caso, e como já referido, o do combate aos crimes de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo), esta lei pretende obrigar, nos termos dos seus artigos 4º, nº 1, al. f) e 79º, todos os Advogados a prestarem informações e colaboração relativamente aos seus constituintes quer ao DCIAP – Departamento Central de Investigação e Acção Penal do Ministério Público, quer à UIF – Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária.
A coisa vai ao ponto de o DCIAP e a UIF lhes poderem exigir directamente certas informações e, quanto às outras, o Bastonário, a quem os Advogados teriam de as prestar, fica obrigado a ser uma mera caixa de correio, ou seja, a “transmitir as mesmas (informações) imediatamente e sem filtragem” àquelas entidades.
Sanções previstas
Tudo isto sob a ameaça de sanções que vão desde a instauração de processo-crime por desobediência qualificada até à aplicação de coimas de milhões de euros, ao encerramento do escritório por um período até 2 anos e à interdição do exercício da profissão por um período até 3 anos (como vem depois estabelecido, entre outros, nos artigos 159º, 169º a 172º da Lei).
Já conhecemos a lógica deste tipo de medidas, que é afinal sempre a mesma e que tem marcado todas as reformas do processo penal no pós 25 de Abril, e em particular desde 1987 para cá, ou seja, a de, em nome da segurança e da eficácia no combate à criminalidade mais complexa e apetrechada, ir limitando, esvaziando e até inutilizando os direitos, liberdades e garantias mais básicas. Ao ponto de hoje podermos ter uma pessoa presa preventivamente durante um ano sem saber de que é que é acusada ou de a polícia poder fazer aquilo que nem a Pide fazia, entrando em casa dos cidadãos entre o pôr e o nascer do sol.
Mas desta vez foi-se definitivamente longe de mais. Não apenas porque o já hoje omnipotente DCIAP passa a poder aceder “directamente e mediante despacho a toda (é essa a expressão da lei “toda”!) a informação financeira, fiscal, administrativa, judicial e policial” que ele, DCIAP, entenda “necessária aos procedimentos de averiguação preventiva subjacentes ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo”. Isto é, a tropa de elite do Ministério Público, desde que invoque (mesmo que se comprove depois que sem fundamento algum) que é para a averiguação daqueles dois tipos de criminalidade, pode aceder a todo o tipo de informações relativamente a qualquer um de nós.
Direito e o dever de sigilo são totalmente quebrados
E ainda pior que isso! O direito e o dever de sigilo das comunicações e contactos de qualquer cidadão com o seu Advogado – verdadeira pedra angular de um Estado não policial mas de direito democrático – são totalmente quebrados. E, com esta lei, o cidadão que entra no escritório de um Advogado deixa de ter a certeza de que o que ali disser ou revelar está coberto por um verdadeiro “segredo de confissão” e de que as polícias (sejam elas a PJ, a PSP, a GNR ou o Ministério Público) não podem escutar as conversas entre ele e o Advogado e muito menos forçar este a revelá-las.
Não! A partir de agora, e se esta aberração policiesca passar, o Advogado passa a ser um delator ou, porque não dizê-lo com todas as letras, um bufo, sempre obrigado a denunciar às ditas polícias o cidadão que nele confiou, ou então, e se, em consciência, entender não dever quebrar essa relação de confiança, vai poder ir preso e poder ser impedido de exercer a Advocacia!
É claro e não se questiona que um Advogado não pode servir-se da sua profissão para ser autor ou cúmplice de crimes e que, se assim agir, ele deverá estar sujeito às mesmas consequências penais que os seus cidadãos. Mas do que se trata aqui não é nada disso, mas antes de querer transformar o Advogado num informador e num colaborador da polícia. E isso, ele não o é, nunca o foi nem nunca o será!
Luta de todos os cidadãos
A batalha, dura e decidida, contra esta monstruosidade verdadeiramente proto-fascista não é, pois, uma causa só dos Advogados, mas sim de todos os cidadãos. E deve ser travada desde já, por todos os meios e com toda a firmeza!
Porque, disso não tenhamos dúvidas, a não ser travada e vencida, ela representará o verdadeiro toque a finados do muito pouco de democrático que resta na nossa Justiça, em especial na Justiça Penal…
[1] As directivas 2015/849/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e 2016/2258/UE do Conselho, e o regulamento 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho.