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Quarta-feira, Novembro 27, 2024

Os tempos modernos do mercado de trabalho

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

O IEFP – Instituto do Emprego e Formação Profissional veio divulgar na passada 3ª feira, 19/9, que o número de desempregados oficialmente inscritos nos centros de emprego em Agosto foi de 418.200, o que representaria uma subida de 0,5% relativamente ao mês de Julho, mas uma descida de 16% com referência ao mês de Agosto de 2016 (sendo essa quebra de 20% para o desemprego jovem e de 14,1% para o de longa duração).Decerto que veremos durante estes dias os paladinos do Governo de António Costa a auto-elogiarem-se com aquilo que designarão do seu “combate ao desemprego” e os seguidores de Passos Coelho e de Cristas a manifestarem o mesmo tipo de opinião, mas a revindicarem para as suas políticas de seguidores da Tróica os respectivos louros.

Todavia, importa ver para além das aparências e constatar como esse aumento estatístico do emprego encobre uma realidade bem negra, sobretudo quer para os jovens quer para os trabalhadores mais idosos, de mais baixa qualificação e desempregados de longa duração.

A realidade das estatísticas oficiais

Antes de mais, estas estatísticas oficiais – baseadas no número de inscrições nos centros de emprego – escamoteiam realidades marcantes e muito gravosas do chamado mercado de trabalho.

1º Desde logo, a dos trabalhadores realmente desempregados, mas que, nomeadamente por terem atingido o limite máximo de subsídio de desemprego e não tendo conseguido novo emprego nem vislumbrando tal hipótese no horizonte, não fazem ou não renovam a sua inscrição nos centros de emprego e já não procuram emprego (os anteriormente chamados “inactivos desencorajados” e agora “inactivos disponíveis” na linguagem mais recente do INE – Instituto Nacional de Estatística).

2º Depois, a dos trabalhadores que estão na prática desempregados, mas que, por arranjarem um qualquer “gancho” onde apenas trabalham algumas horas e recebem umas escassas dezenas de euros por semana, saltam fora das estatísticas oficiais de desemprego (é o denominado “sub-emprego visível”).

3º Finalmente, a dos reais desempregados que, por estarem a frequentar acções de formação ou estágios profissionais ou se encontrarem no chamado “trabalho socialmente necessário”, também ficam de fora dos números oficiais do desemprego (são os denominados “desempregados ocupados”).

Trabalho precário

Para além disto, convirá acentuar que, no 1º semestre deste ano, o número oficial de contratados a termo (que representam mais de 80% do 1º emprego, ou seja, do emprego dos jovens) ascendia aos 640.000. E os trabalhadores em regime de trabalho temporário tem rondado os cerca de 125.000. Por fim, o número formal de prestadores de serviço registados (recibos verdes formais) ultrapassa os 130.000, não se tendo a noção exacta, mas estimando-se, pelo aumento do número de trabalhadores ditos “independentes” ou “autónomos” e também de “sociedades unipessoais” (que estão hoje e cada vez mais a servir para encobrir e fazer eximir à legislação laboral verdadeiras relações de trabalho subordinado), que o número de falsos recibos verdes ou falsas prestações de serviço rondará os 500.000.

Note-se que estamos a falar do chamado sector do trabalho formal ou declarado, sendo que a própria ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho já estimou, em tempos recentes, mais exactamente em Abril de 2015, o trabalho clandestino (ou “não declarado”) como representando entre 20 a 27% de toda a força laboral portuguesa.

Estes números significam assim que o número real de desempregados é perto de uma vez e meia dos números oficiais e destes, de acordo com os dados do próprio INE relativos ao 2º trimestre de 2017, apenas 24,3% recebe subsídio de desemprego. E que, de uma população activa de cerca de 4 milhões e 700 mil trabalhadores, cerca de um milhão é clandestina e outro milhão precária.

Baixos salários

Quanto às remunerações dos trabalhadores declarados convirá também dizer que, no 2º trimestre de 2017, 128.000 (3,3%) ganhavam até 300€/mês, 998.300 (25,4%) mais de 300€ e menos de 600€ e 1.245.300 (31,7%) ganhavam por mês mais de 600€ e menos de 900€, ou seja, 2.371.600 trabalhadores (60,4% do total de emprego formal) ganham menos de 900€/mês!

E se é certo que o salário líquido médio aumentou, entre o 3º trimestre de 2015 e o 1º trimestre de 2017, cerca de 2,1%, ou seja, de 829€ para 846€, a riqueza dos 25 mais ricos do país cresceu de 2016 para 2017, 26,9%, isto é, 4 mil milhões de euros, representando no presente ano mais de 18 mil e oitocentos milhões de euros!

Finalmente, os chamados custos salariais unitários (ou seja, o valor do salário mais o das contribuições para a Segurança Social – TSU a cargo do patrão) diminuíram em Portugal numa década 4,2%, ou seja, 8 vezes mais que na União Europeia (0,5%), representando esse custo/hora médio de um trabalhador em Portugal no final de 2016, 11,3€. Isto enquanto na média de toda a UE-28 era de 26,60€, na Alemanha 38,80€, na França 38,30€, na Irlanda 32,50€, na Itália 27,80€, na Espanha, 23,30€ e até na Grécia 15,10€.

E, tão significativo e tão grave quanto isto, é que, depois de um aumento muito significativo das habilitações e qualificações dos trabalhadores portugueses (a ponto de se ter passado do 4º trimestre de 2008 com 30,9% de trabalhadores com ensino secundário ou superior para 52% no 2º trimestre de 2017), a produtividade do trabalho calculado com base no chamado VAB (Valor Acrescentado Bruto), ou seja, eliminando o efeito dos impostos pagos e subsídios recebidos pelas empresas, tem vindo a baixar consistentemente em 2017.

Tudo isto significa apenas várias coisas

1º A receita da Tróica – seguida violentamente pelo Governo PSD/CDS, e continuada pelo actual Governo PS (que não a alterou substancialmente recusando-se obstinadamente a revogar as chamadas “reformas laborais” da mesma Tróica) – de procurar aumentar a produtividade e a competitividade da economia portuguesa à custa de uma brutal “desvalorização interna” (ou seja, através da destruição maciça do emprego, incrementada pela facilitação e embaratecimento dos despedimentos e da contratação precária, do aumento dos tempos de trabalho e do abaixamento dos já miseráveis salários dos trabalhadores portugueses) revelou-se um falhanço absoluto, com consequências sociais brutais e revoltantes, e agravando o papel do nosso País como uma autêntica colónia no seio da União Europeia.

2º O emprego que está a ser criado em Portugal é essencialmente trabalho precário, muito mal pago e pouco produtivo, quer em termos absolutos, quer, mais ainda, em termos relativos.

3º Um outro aspecto desta realidade de que quase ninguém fala e que é o de que, não só nas áreas do trabalho semi-formal e fraudulento mas também nos sectores do trabalho formal, e inclusive de contratação não precária, os níveis de exploração e opressão patronais estão a atingir patamares de violência verdadeiramente inauditos.

Ao ponto de uma insuspeita auditora como a Verisk Maplecroft ter recentemente afirmado com todas as letras que “os riscos de escravatura moderna estão a aumentar em Portugal” e de um simples apelo numa página de emprego no Facebook ter desencadeado, sobretudo por parte de jovens, uma autêntica torrente de denúncias verdadeiramente arrepiantes: licenciados como dentistas, farmacêuticos, arquitectos, engenheiros e outros profissionais, alguns deles altamente qualificados, dos mais diversos sectores, explorados até à medula dos ossos, pagos à comissão ou com o salário mínimo, com horários de 10, 12 e até 16 horas diárias, ausência de intervalos de descanso e de refeição, transferências arbitrárias e consecutivas, utilização diária de técnicas de assédio moral (tais como humilhação, insultos e tortura, do estilo “quem se porta mal vai de castigo para a cave, sem tarefas, constantemente vigiado”), fixação de objectivos impossíveis, remunerações miseráveis pagas por baixo da mesa, divergências marcadas entre as retribuições efectivamente pagas e as formalmente declaradas (designadamente à Segurança Social), impedimento do gozo de licenças de maternidade e paternidade, ostensivo e arrogante não pagamento de inúmero trabalho suplementar prestado, inclusive nos dias de descanso, etc., etc., etc.

E ainda o medo… o balanço é negativo

E, simultaneamente, a igualmente arrepiante (mas não totalmente surpreendente) denúncia de que queixas à ACT e/ou à Segurança Social “nunca deram em nada” e de que, em muitas outras situações, não são sequer feitas por serem conhecidas as retaliações e a respectiva impunidade contra quem antes as ousou fazer.

É, pois, tempo de, muito para além daquilo que os números oficiais das estatísticas já revelam, inquirir e debater a sério que tipo de relações laborais estão a ser criadas e praticadas em Portugal e o modo como nelas os mais elementares direitos  de quem vive do seu trabalho (não só laborais, mas também cívicos e sociais) são todos os dias espezinhados e destruídos.

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