DO AVESSO
Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola, canta José Mário Branco a letra arrepiante de Natália Correia. A frase confere-nos o sentido da vida que nos é oferecido pelo sistema. Não só um dos aspetos centrais da história universal, cada vez mais revisitado na história europeia, é a tentativa de fazer sobressair o nacionalismo – formato de grupos coesos, com os mesmos lírios, os mesmos canivetes e insuportavelmente a mesma alma para ir a uma escola que não produz cidadãos multiculturais mas estatísticas formatadas com sucesso escolar e insucesso humano -, como torna evidente uma verdade antiga: a política criou o poder e os senhores do poder. Estes criaram as fronteiras e uma coisa muito abstrata e cómoda para unir os povos: a Nação.
São dois lados de uma balança ferrugenta que, uma vez mais, se digladiam: de um lado a impossibilidade racional de uma identidade nacional – nenhum País é um povo, mas povos que coabitam, grupos distintos, seres individuais e irrepetíveis que nuns casos são um grupo e logo noutros são outro grupo, marcados por educação familiar, tribal, regional, local, de acordo com convenções da aldeia, da vila, da cidade, do eremitério, da religião ou da ideologia onde ganham expressão. E, do outro, a ilusão de um Estado capaz do plurinacional, onde os Decretos procuram o formato dos sentimentos.
Até há uns anos, a Nação era a modernidade, deixando para trás a definição antiga que a limitava num agregado dos habitantes de um mesmo local (província, país ou reino). O endurecimento e o triunfo da ideia de Estado conferiu ao termo uma agitação do corpo político: a Nação passava a ser um centro supremo de governo comum. Uma comunhão de interesses, subordinada a um Estado – e fortalecida pela ocupação de um território de fronteiras bem definidas, por tradições e aspirações e interesses comuns. A ideia de uma união europeia, suprimindo fronteiras, permitindo a livre circulação de pessoas bens e serviços, veio criar angústias nos mais conservadores: a minha velha terrinha, tão modesta como eu, com a santinha da orada e o poço comunitário seria considerada como um todo? Que tristeza para quem se regalava com a imagem que a água parada no fundo do mesmo poço refletia!
Quando olhamos para os mais recentes acontecimentos ocorridos perto da nossa fronteira, na Catalunha, várias ideias nos acorrem. Descubro que a versão final de Nação só emerge no dicionário da Academia espanhola em 1925. É então descrita como “a coletividade de pessoas que têm a mesma origem étnica e que, em geral, falam a mesma língua e têm toda uma tradição em comum”.
Quando escrevo estas linhas sou informado que, já depois da prisão de 14 elementos do Governo da Catalunha, ocorrida há um par de dias, os agentes da Guardia Civil que estavam desde a manhã de quarta-feira na sede do Departamento da Economia, edifício, situado no final da Rambla da Catalunha, próxima da Gran Via de Barcelona, abandonaram finalmente o local. Os agentes da Guardia Civil não conseguiam sair do edifício que estava cercado por milhares de pessoas em defesa do referendo (não autorizado pelo Estado) à independência da Catalunha. Foram escoltados pelos Mossos d`Esquadra (polícia catalã).
As nações não têm um elo intrínseco com o território – a história tem-nos demonstrado isso mesmo várias vezes -, embora a ideia de povo soberano ligue a nação ao território. Nas utopias, a mais feliz é a de 1795, na Declaração Francesa dos Direitos em que se consagra que “cada povo é independente e soberano, independentemente do número de indivíduos que o compõem e da extensão de território que ocupa. Esta soberania é inalienável”.
Isso levava-nos à noção de povo – e de povos – e de outras subdivisões. Não acredito que quem me lê se sinta identificado com tudo o que conhece dos outros habitantes do seu prédio – reparem que já nem peço que dê uma volta pelo seu bairro – apesar do crescimento intelectual do ponto de vista democrático-revolucionários dos últimos 250 anos que nos consagra o respeito pelas diferenças étnicas de grupo, secundárias para os progressistas, aviltantes para os conservadores.
A situação da Catalunha é o último capítulo conhecido na longa história dos nacionalismos. Em cima da mesa voltarão a estar discussões em torno de etnicidade, de língua comum, de religião, de território e até de memórias históricas comuns. Se a independência chegar à Catalunha, cada catalão terá o seu lírio, o seu canivete – a sua alma para ir à escola. Até entender que o planeta de todos é composto de indivíduos e que, talvez infelizmente, o individualismo, o cidadão soberano, não gosta que lhe ofereçam uma identidade por decreto.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90