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Domingo, Dezembro 22, 2024

Reflexões sobre as Autárquicas

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Não foi bem o que se disseExiste uma tendência no nosso País (mas que não é exclusiva) para esmiuçar os resultados eleitorais e fixar na opinião pública uma imagem global do resultado político das eleições logo na própria noite eleitoral, sem ainda se conhecer a verdadeira dimensão e as características do processo. Os partidos sabem isso e procuram ocupar o espaço público de modo a condicionar esta imagem a seu favor, seja qual for o resultado. Ficaram célebres, nas noites das eleições, as vitórias de Paulo Portas, não contra os adversários, mas sim contra as sondagens. Isto nem é estranho em relação às formações políticas porque se trata da continuação da refrega política por outros meios, em época de permanent campaigning.

O que é estranho é que o assunto quase saia da agenda pública logo no dia seguinte, deixando que as primeiras impressões se tornem definitivas, mesmo quando acabem por se revelar erradas. Muitas, demasiadas vezes, ficam consolidadas ao arrepio dos verdadeiros resultados eleitorais e do seu real significado. Na verdade, tratando-se de uma realidade muito complexa e de números que necessitam de um aturado trabalho de descodificação, o que é necessário, para termos um mapa mais ou menos correcto do que aconteceu e da vontade política da cidadania, é consultar o site da CNE e analisar os resultados com tempo e serenidade. Certamente que os partidos o fazem, mas para exclusivo uso interno. Procuro dar neste artigo o meu contributo para essa clarificação.

Os dados

  1. O que é que em linhas gerais aconteceu? Inscritos: 9.411.530 cidadãos eleitores. Votaram, nestas eleições, 5.173.027, equivalentes a 54,96%, ou seja, mais 175.022 cidadãos do que em 2013, o que é um dado positivo, embora continue a ser preocupante, por tão baixa ser a taxa de participação. Refiro-me, para começar, às Câmaras Municipais (CMs), para simplificar o discurso.

Os mandatos em causa, para as CMs, eram 2074, num total de 35.554 mandatos para as CMs, as Assembleias Municipais (AMs) e as Assembleias de Freguesia (AFs).

  1. O vencedor claro destas eleições foi o PS, tendo obtido, sozinho, para as CMs, 952 mandatos, mais 29 do que os que obtivera em 2013, e 2731 para as AMs, mais 72 do que os que obtivera em 2013. Só em relação às AFs o PS viria a perder 221 mandatos (10.617 contra 10.838, em 2013), mantendo-se, todavia, muito à frente do segundo partido mais votado, com mais 3.988 mandatos. São números muito claros. Mas também em número de Presidências de Câmara o PS venceu em larga escala, com 159, contra 79 do PSD, 24 do PCP, 17 dos Movimentos Autárquicos Não Partidários (MANPs) e 6 do CDS/PP.

  1. O PSD, o PCP-PEV e o CDS foram partidos claramente perdedores, não só em relação a quem venceu as eleições, PS, MANPs e BE, mas também em relação aos resultados obtidos em 2013. Relativamente a 2013: o PSD perde 38, 97 e 298 mandatos, respectivamente para as CMs, AMs e AFs; o PCP perde 42, 128 e 308 mandatos, respectivamente para as CMs, AMs e AFs, sendo relevante sublinhar que perde 10 Câmaras, sendo três delas extremamente importantes (Évora, Almada e Barreiro), o que adquire um particular significado para um partido que tem no poder local um dos seus mais importantes pilares e que exibe, desde há duas décadas, uma modesta média eleitoral de cerca de oito por cento; e o CDS/PP perde 6, 40 e 97 mandatos, respectivamente para as CMs, AMs, AFs, embora aumente uma Presidência de Câmara (com maioria relativa). O Bloco de Esquerda vê aumentar (não muito) a sua base eleitoral, mas não consegue ganhar nenhuma Câmara. No conjunto das alianças entre o PSD e o CDS/PP (e forças políticas quase sem expressão eleitoral, MPT, PPM…) verificou-se, para as CMs, um ligeiro aumento, traduzido em mais 22 mandatos do que em 2013.

  1. Relativamente aos Movimentos Autárquicos Não Partidários, e a 2013, verificou-se um reforço em todas as frentes: mais 18, 44 e 376 mandatos, respectivamente para as CMs, AMs e AFs, tendo aumentado o números de votos em todas elas e conquistado mais 4 Presidências de Câmara (de 13 para 17), sendo de notar que em dois importantíssimos Municípios, Porto e Oeiras, confrontando-se com os dois pilares do sistema, os respectivos MANPs conquistaram duas maiorias absolutas. De resto, na maioria dos Municípios em que venceram (17) conseguiram ter maiorias absolutas.

 Grande vitória do CDS/PP?

  1. O caso que merece ser comentado mais em detalhe é o do CDS/PP, que apareceu como grande vencedor nos fóruns de debate e na opinião pública, logo na noite das eleições. Tendo perdido no país, pôde exibir um inesperado resultado em Lisboa, obtendo para a Câmara o dobro (quatro) dos mandatos do PSD (dois) e quase o dobro dos votos (51.984 contra 28.336). Mas o que é curioso é que para a Assembleia Municipal os dois partidos já se aproximam (9 mandatos contra 8 e 16,94% contra 15,16%), invertendo-se no caso das Assembleias de Freguesia (53 mandatos contra 70 do PSD, com cerca de 4 pontos percentuais de diferença em matéria de votos). Por outro lado, enquanto o PSD conquistou 4 Freguesias (Belém, Estrela, Areeiro e Santo António, perdendo para o PS freguesia das Avenidas Novas) e o PCP uma (Carnide), o CDS/PP não conquista sequer uma Freguesia. Daqui resulta que o PSD terá de facto mais deputados municipais (8+4=12) do que o CDS (9), uma vez os Presidentes de Junta fazem parte, por inerência, da AM. A comparação com 2013 não se pode fazer porque nessa altura houve uma coligação. Mas é possível constatar que a direita, no seu conjunto, obteve nestas eleições globalmente um reforço de posição, passando dos 22,37%, com 4 mandatos para a CM, para os 31,81, com seis mandatos. E, todavia, no plano global o CDS/PP não pode efectivamente exibir uma vitória que, de facto, não teve. Mesmo no caso de Lisboa, vista a falta de consistência orgânica no tecido autárquico territorialmente difuso, sem juntas de freguesia e com score eleitoral e de mandatos muito inferior ao do PSD no plano das AFs, é possível formular três hipóteses relativamente ao resultado de Assunção Cristas:
    1. a inconsistência da candidata do PSD e a falta de suporte político que exibiu em virtude do arbitrário processo de escolha, de preparação e de organização da respectiva candidatura, à revelia das estruturas do PSD/Lisboa, levando uma parte do aparelho deste partido a desertar a candidatura e uma boa parte do seu eleitorado a votar Cristas, de acordo com a lógica do voto útil;
    2. até porque, sendo líder nacional do CDS e ex-ministra de um governo daquele partido, a sua exposição pública regular e persistente no tempo veio favorecer a deslocação de votos dos que não se reviam na candidata do PSD;
    3. acresce que o mal-estar relativamente à liderança do PSD protagonizada por um Passos Coelho demasiadamente hirto, intransigente, internamente sectário e incapaz de metabolizar (a) a derrota política que se seguiu ao processo eleitoral para as legislativas e (b) a autónoma vitória presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa veio favorecer uma espécie de voto útil em Assunção Cristas, não só para o fragilizar, preparando o seu afastamento, mas também para evitar a maioria absoluta de Fernando Medina, o que acabaria por vir a acontecer.

Eu creio, portanto, por todas estas razões, que este retumbante resultado de Cristas não passará de um abalo conjuntural de um partido, o PSD, que viveu as autárquicas de Lisboa como um pesadelo que uma nova liderança virá resolver, repondo a sua consistência eleitoral na Capital. A política, embora não pareça, ainda mantém fortes exigências de tipo orgânico que um partido como o CDS não consegue alimentar no terreno, por ser um pequeno partido de quadros. A prestação de Adolfo Mesquita Nunes na Covilhã e a relativa ineficácia da candidatura de Carlos Pinto comprovam, de forma diferente, o que acabo de dizer: um, Adolfo, afirma-se com relativa eficácia (um resultado excelente: 15,10%, para a CM, a três pontos de Carlos Pinto) pela sua notoriedade pública (sobretudo televisiva), confirmando o que todos sabemos, ou seja, a eficácia política da notoriedade; o outro não consegue impor-se por já não dispor (ao contrário de Vítor Pereira, o actual Presidente) de consistência orgânica, no terreno, apesar dos inúmeros como Presidente da Câmara, ao mesmo tempo que já não tinha suficiente notoriedade pública ancorada na força legitimadora da relação com o poder central. E o mesmo vale para Valentim Loureiro, em Gondomar.

Uma leitura nacional

  1. Uma leitura nacional destes resultados é mais que legítima, útil e desejável. Afinal, os cidadãos exprimiram-se, ao mesmo tempo, politicamente em todo o território nacional e em relação a matérias que os afectam directamente, ou seja, agiram com conhecimento de causa. Aqui intervêm muitos factores, como a proximidade, a personalização da política, a obra feita, o efeito-marca, sendo certo que também se verifica uma espécie de sobredeterminação das eleições locais pela política nacional, agindo como uma espécie de pressão ambiental sobre o eleitor, sobretudo quando se está numa fase mais intensa da política, seja ela negativa ou positiva. Neste caso, o efeito “geringonça” pode ter accionado um movimento que veio favorecer o PS. Por outro lado, creio que a conquista de Câmaras pelo PS ao PCP pode ter como causa, entre outros factores, a descrispação das tradicionais relações entre estes dois partidos, historicamente muito tensas, até porque sempre disputaram terreno politicamente afim. A participação do PCP nesta solução governativa do PS, promovida por António Costa, de certo modo libertou a “consciência” de muitos eleitores do PCP que deixaram de ver o PS como o velho “traidor” da classe operária, processando-se por esta via como que uma sua relegitimação aos olhos do sector eleitoral mais radical de esquerda. Quanto ao CDS creio já ter referido que se trata sobretudo de um fenómeno de natureza superestrutural a que falta consistência orgânica e territorial. Os resultados globais, negativos, não confirmam de facto este resultado de Lisboa, mas o facto de a candidata, no terreno há cerca de um ano, ser líder nacional com abundante presença no espaço público, designadamente televisivo, não deixa de ter o seu significado e a sua influência. De qualquer modo, a leitura nacional que Passos Coelho fez destas eleições era obrigatória, sobretudo pelos resultados dramáticos que obteve ao nível das duas grandes cidades do País (uma média de 11%, para a CM). No processo autárquico, talvez o líder do PSD se tenha preocupado mais em arregimentar tropas para a competição interna que se avizinhava do que para obter bons resultados eleitorais, enganando-se, pois estes, de tão maus, acabaram por cair como um pedregulho sobre o PSD, a sua estratégia e a sua pessoa.

  1. Outro aspecto a ter em consideração é o dos Movimentos Autárquicos Não Partidários. No Porto, mas também em Oeiras, os dois pilares do sistema de partidos foram confrontados com dois MANPs fortemente personalizados, nas figuras de Rui Moreira e de Isaltino Morais, mas com grande implantação no terreno. Rui Moreira ganhou seis da sete freguesias. Isaltino ganhou quatro das cinco. Mas, em geral, as vitórias presidenciais destes movimentos resultaram em maiorias absolutas, o que parece ser uma nova variável que deverá ser tida em consideração pelos partidos tradicionais. Sabe-se como a legislação dificulta estas candidaturas. Sabe-se também que estes movimentos ainda têm uma organização nacional muito pouco activa e eficiente. Mas também se sabe que a cidadania tem evoluído de tal modo que deixou de ser encapsulável com a velha ideia comunitária da pertença, em detrimento da informação e da exigência crítica. E estes fenómenos, aqui, a nível local e, por aí, já a nível nacional, anunciam novas exigências para a política que terão de ser levadas muito a sério porque os instrumentos de acção, de mobilização, de auto-organização e de participação da cidadania para a alternativa já existem e são poderosos.

Finalmente,

  1. Finalmente, é possível também dizer que nestas eleições o grande teste da solução política nacional promovida por António Costa foi feito e resultou na sua normalização e na sua legitimação, ao mesmo tempo que representou uma recusa política do caminho traçado por Passos Coelho. Por outro lado, enquanto reforçou as propostas da cidadania expressa nos MANPs, não sufragou, de facto, a propalada força propulsora da líder do CDS/PP, tendo também evidenciado, por um lado, uma progressiva fragilização do PCP naquele que tem sido talvez o seus principal pilar e, por outro lado, um modesto reforço do Bloco de Esquerda. Apesar de tudo, não vejo nestas eleições uma viragem política tão profunda como parece resultar da imagem que ficou de certo modo cristalizada na noite das eleições e não obstante a saída de Passos Coelho e a entrada em cena de Pedro Santana Lopes, com o seu PPD/PSD, e de Rui Rio, com a sua longa marcha de tartaruga em direcção a um poder a que poderá nem sequer chegar se não acelerar o passo. Vamos ver o que nos dirá hoje, depois do que ontem o afável velocista Santana Lopes já nos disse, na SIC – uma visão mais humana e de proximidade no exercício da política. E um regresso simbólico à matriz inaugurada por Sá Carneiro.

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