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Quarta-feira, Julho 17, 2024

As lágrimas não se escondem

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Ao contrário das balas de Tancos.

Escrevi aqui, há um par de semanas, que não somos grande coisa, mas talvez me tenha equivocado.

Refletindo, um pouco mais, será mais sensato apregoar que somos coisa nenhuma.

Não, não é uma afetação bíblica, inspirada naquela imagem dos Salmos (103:14, se as aulas do Mestrado me ajudam) em que a bem conseguida metáfora afirma que somos pó. Diria o viciado: depende do pó. Diria o mais acertado que essa dimensão por um lado nos reduz à nossa pequenez e insignificância terrena, como nos anula no imensos Cosmos, espaço onde parecemos – somos – criaturas perdidas e solitárias, sem o menor préstimo para a composição do Todo (seja lá isso o que for).

Não valemos nada

A nossa acidulada forma de pensar, com bílis na massa cinzenta, impede-nos de fazer, de agir, de pensar e até de sentir. Ficamos pelo digladiar, pelas “bocas” que mandamos, somos inábeis espadachins, e damos a imagem do que somos às gerações futuras condicionando-as: vê, o pai, o avô, a avó, a mamã não valem nada. Não queiras ser diferente.

Cada momento de viragem específico da História causa alguma mudança em escala diferente, mais ou menos de uma forma decisiva. O capitalismo afundou o feudalismo. Os marxistas tornaram tão extremista o marxismo que ainda hoje os seus opositores nos querem fazer acreditar que não passa de um fundamentalismo assassino (provavelmente só porque Marx anunciava um final feliz para o capitalismo, em morte rápida, o mais tardar no fim do século XX).

A Democracia, essa entregou-se na mão de alguns que a traíram e que figuram na primeira linha com rótulos e bandeiras nacionais na lapela, querendo convencer-nos: “que eu até sou democrata”.

As religiões, por seu turno, muito ao invés de se constituírem como alternativa, pois podiam consagrar o lado humano, espiritual-contemplativo do ser humano, numa tribo única e apaziguada, deixaram de ter essa mesma configuração do humano para passarem a ser instrumentos de poder; os seus fiéis reduziram-se ao papel de escravos obedientes dos poderosos que puxam os cordéis dos seus cada vez mais débeis e inúteis movimentos.

Somos um povo capaz de glorias, mas que…

Não me apetece muito olhar para o exemplo português, embora seja flagrante verificar que um governo atípico, resultante de uma vontade de salvação nacional, empreenda uma escalada positiva de recuperação económica e de autoestima social, e, por não haver mais argumentos para depô-lo, tenha de enfrentar uma oposição desnorteada, que parece não ser alheia ao fogo-posto e a inventonas de roubos em paióis de munições, já que o seu historial foi de mais de metade da História a fazer coisas assim, somando-se o desperdiçar, o deitar dinheiro pelas janelas para dentro dos bolsos dos seus correligionários mais corruptos, vivendo deles e com eles, tonando-os ministros, banqueiros, presidentes – traindo um povo capaz de obras gloriosas que enfrenta tudo, só da lei da morte não se liberta, mesmo que seja homenageado em campas de soldados desconhecidos.

Já vivemos muitas vezes o fim do mundo. Para os protagonistas dos mercados e dos negócios, o mais inquietante na nossa era foi aquele que antecipava uma grande perda: íamos ficar sem a maior marca do progresso, o mundo dos computadores ia trair-nos. Bug Y2K foi o termo usado para batizar o fenómeno, mas os minimalistas e os mais afetivos, preferiram Bug. Era previsto ocorrer em todos os sistemas informatizados, na passagem do ano de 1999 para 2000, porque as datas eram representadas somente por 2 dígitos e os programas assumiam o “19” como um prefixo para formar o ano completo. Assim, quando o calendário mudasse de 1999 para 2000 o computador iria entender que estava no ano de “19” + “00”, ou seja, 1900. Tudo ficaria com cem anos de atraso.

Os nossos sistemas operativos são mais lúdicos ou mais humanos?

Já ninguém se lembra desse Bug, nem do Terramoto de Lisboa – a catástrofe maior? -, ou das pestes negras, da gripe espanhola, das aves, ou da vergonha das cheias que Salazar mandou esconder dos títulos da imprensa.

Agora, até temos uma revista, felizmente pouco lida, a fazer uma capa aviltante. Só porque somos coisa nenhuma?

Creio que merecíamos melhor, pelo lado fascinante da nossa resistência. Aos sistemas de pensar, que não dominamos, há sempre o lado oposto que é a ilusão de que pensamos – a nossa indiscutibilidade.

Escrevo isto para não chorar. E cumprimento cada uma das lágrimas da mulher Constança Urbano de Sousa e do salgado luto que, tal como ela, nenhum de nós devia querer esconder.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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