De repente, não mais que de repente, uma crónica lida hoje na imprensa brasileira (Cabecinhas brancas flutuantes) trouxe-me o céu de Lisboa, reabriu a ferida da saudade e mudou todos os meus planos de escrita. Impossível, depois dela, falar dos novos planos da China ou da crise na Catalunha. Hoje, tenho que falar de Portugal… e do Brasil.
Não tenho de imediato uma imagem forte para contrapor, aqui de Brasília, ao título poético das “cabecinhas brancas flutuantes”, com que, a partir de Lisboa, nos brinda a autora, Ruth Manus.
Da capital brasileira, o que guardo sempre é a impressão da primeira hora – o projecto de uma grandeza serena expressa no traçado modernista dos anos 60 concebido pelo arquiteto Óscar Soares, mais conhecido por Niemeyer, juntamente com o urbanista Lúcio Costa. Melhor que eu o disse Sophia quando escreveu que a nova capital do Brasil obedecia a uma lógica lírica, grega, brasileira, ecuménica, “propondo aos homens de todas as raças a essência universal das formas justas.”
Para mim, esse centro histórico de Brasília, hoje património da Humanidade, erguido literalmente a partir do zero, quando as máquinas rasgaram em cruz a natureza seca do planalto central, que só o lago artificial do Paranoá viria depois amenizar, permanece como símbolo da promessa brasileira de futuro, por mais que as realidades presentes teimem em dela nos afastar.
Nesse conjunto arquitetónico, o destaque vai, sem dúvida, para a catedral de Nossa Senhora da Aparecida, com a sua estrutura a lembrar mãos em concha erguidas aos céus, num misto de clamor e prece, onde as velhinhas portuguesas de cabelo branco vestidas de negro, de que nos fala a autora do artigo, certamente não desdenhariam, passado o espanto, poder um dia rezar.
Um fresco gigantesco
No entanto, pese embora toda a sua graciosidade e simbologia, esse é apenas um quadro mais no gigantesco fresco das minhas memórias brasileiras, que vão da imensidão do Amazonas às cataratas da Foz do Iguaçu – superiores às, mais famosas, do Niágara – passando pelo espantoso forte Príncipe da Beira, em Rondônia, na fronteira com a Bolívia (“se mais mundo houvera, lá chegara…”).
Memórias que incluem, também, as cidades miscigenadas de Manaus e Belém do Pará, de fortíssima marca índia; os azulejos do centro histórico de São Luís do Maranhão, por cujas ruas desfilam os cortejos folclóricos do bumba meu boi; os lençóis arenosos da costa leste-oeste, que já deslumbravam os navegadores quinhentistas; a extensa laguna plena de vida do Pantanal, o mar verde e azul de Alagoas, os areais semeados de coqueiros da Baiha, a paisagem ímpar e sempre deslumbrante do Rio de Janeiro sob o Cristo Redentor…
Nessa tela de fundo, despontam depois as igrejas e conventos de Salvador, de população negra predominante, as cidades históricas barrocas de Minas Gerais (Diamantina, São João Del Rei, Tiradentes…), e ainda as de Goiás Velho, Paraty, Pirinópolis… sem esquecer a imensa urbe moderna de São Paulo – Nova Iorque em português (com o seu Museu da Língua, em recuperação do incêndio de 2015 para reinaugurar em 2019), os bairros de origem açoriana de Florianópolis… – tudo sinais inequívocos da herança religiosa e cultural portuguesa, tão pouco evocada, mas ainda tão presente.
O Brasil não é só isso, naturalmente: há também, a partir de finais do século XIX, quando foi promovida a vinda em massa de imigrantes para substituir a mão de obra escrava libertada em 1888, um Brasil italiano, outro espanhol, sírio-libanês, alemão, eslavo, japonês…
Mas toda essa diversidade passou – bem ou mal – pelo melting pot, o caldeirão de origem lusa, e expressa-se por isso em português, por mais diferente que sejam a pronúncia, o estilo, o vocabulário…
Ao contrário do que acontece, por exemplo, em Newark, nos EUA, de forte colónia portuguesa, em cujas ruas é possível encontrar réplicas idênticas, não há, no Brasil, que eu conheça, essas “cabecinhas brancas flutuantes” que tanto encantaram Ruth Manus.
Mas há, difusa, por todo o imenso território, uma não dita, não expressa, não assumida e nem sempre consciencializada presença portuguesa. São as teias que o nacionalismo tece. Sendo, na altura da independência, o sentimento nacional existente o português, o Estado brasileiro independente viu-se na contingência, sobretudo a partir da República, em 1889, de fazer do antilusitanismo a marca distintiva do ser brasileiro. Daí que, como referiu Eduardo Lourenço, “No Brasil, Portugal está em toda a parte e em parte nenhuma.”
Mas os poetas sabem reconhecer os sinais. Ruth – e, com ela, hoje, muitos milhares de brasileiros – descobriu, encantada, esses laços que apesar da distância e do afastamento ainda hoje nos unem. Detectou-os na paisagem de Trás-Os-Montes, do Douro, de Lisboa, do Alentejo… E enterneceu-se ao descobrir as “cabecinhas brancas flutuantes” que deram o título ao seu artigo. Há anos atrás, outro poeta, este português – José Luís Peixoto – já tinha detectado também essa mesma realidade quando chegou à antiga Vila Rica – “Ouro Preto – desço ruas e por baixo dos passos/ um caminho da minha terra: a memória da voz/ limpa, fonte, branca, claridade, claridade,/ a minha mãe/ a minha mãe de encontro a uma parede branca: / vai sempre ao rés da parede, filho. (…) Ouro Preto, chego pela primeira vez aonde/ sempre estive.