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Terça-feira, Julho 16, 2024

O relatório independente lançado à fogueira da demagogia

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

No momento em que escrevo está por saber ainda o efeito de nova vaga de calor que se prevê venha a assolar o continente a partir de dia 24, restando-me a mim como à generalidade dos leigos nesta matéria, longe dos acontecimentos, esperar que não se venham a repetir as tragédias que nos enlutaram neste Verão extraordinariamente longo.
No dia 15 de Outubro, em algumas horas, centenas de incêndios irromperam um pouco por toda a parte em todo o Ocidente da península ibérica a Norte do Tejo, com imagens que correram mundo e efeitos que chegaram à Escandinávia, com céus variando entre o cinzento e o vermelho.

Dezenas de vidas voltaram a perder-se e a destruição atingiu novos patamares, com muitos portugueses a passar pelo terror de ver o seu ambiente, os seus lares, os seus próximos ou a sua vida posta em causa e a maioria dos portugueses a constatar horrorizados a repetida e aumentada incapacidade do seu Estado de fazer face à catástrofe.

Entre declarações de impotência, desânimo e incapacidade de responsáveis que se tornaram agora mais insuportáveis, a emoção toldou frequentemente a razão por parte de muitos entre nós.

Pelos relatos da imprensa pudemos verificar agora que muitas mais catástrofes conseguiram ser evitadas por quem conseguiu manter o sangue frio e salvar dezenas de pessoas, enquanto muitos milhares de portugueses resistiram estoicamente durante a noite inteira contando apenas consigo mesmos.

Emoção ou razão. Qual é maior garante democrático?

Mas aqui, como acontece em outras catástrofes de grande dimensão (e os mecanismos não são essencialmente diferentes quando se trata de catástrofes de origem natural ou de origem humana, acidental ou provocada, por guerra, terrorismo ou crime) houve também quem ficasse paralisado quando deveria agir ou quem tentasse encontrar bodes expiatórios.

A demissão de responsáveis governativos é uma tradição que reivindicamos como a de selo de garantia democrática. E se a demissão dos responsáveis políticos quando algo corre mal reflecte a transitoriedade do poder que é um elemento fundamental do sistema democrático, o essencial da tradição liberal dos nossos sistemas ocidentais não está aí, mas na existência de relatórios independentes que não hesitam em criticar tudo o que há a ser criticado.

E por uma vez, em Portugal, em espaço relativamente curto, os nosso sistema político conseguiu isso mesmo, um relatório independente, altamente qualificado, e em que nenhuma estrutura do poder foi poupada, relatório que surgiu no entanto dias antes da mais recente calamidade.

Não poderemos culpar a opinião pública por, no auge da tragédia, ter ignorado centenas de densas páginas sobre o mal que nos aflige e ter antes exigido acções imediatas, apoio às vítimas, demissão de responsáveis.

A vida político-partidária, infelizmente, é cada vez mais dominada pela demagogia, pela encenação teatral e pela falta de escrúpulos, e vimos assim quem se notabilizou por agravar os factores que levam a estes incêndios calamitosos nos últimos anos a assumir o lugar de justiceiro e, sem ponta de vergonha, afirmar a sua vergonha pelo que os outros fazem.

A deriva demagógica, populista se preferirem, que é uma constante de todos os sistemas democráticos, tem como contrapeso a observação que se mantém válida de que se trata do menos mau dos sistemas. A deriva demagógica é limitada pelo sistema de separação de poderes e pelo recurso a elementos tecnocráticos.

“Demagogia, feita à maneira, é como…”

E em Portugal, cabe ao Presidente da República esse papel de um poder distanciado da guerrilha político-partidária, que pode ver as coisas com mais desprendimento e ter em conta quem tecnicamente sabe do que fala.

E assim se esperava que tivesse acontecido, com a ocasião de ouro propiciada pela publicação de um relatório independente de elevadíssimo calibre, que permitiria assim que o país não ficasse entregue à demagogia e oportunismo.

Mas Portugal tem que constatar que em vez de um Chefe de Estado que precisa teve antes um chefe de facção político-partidária, criador de factos políticos e mergulhado na manobra parlamentar.

Na sua comunicação ao país, o nosso Presidente da República fez um apelo à alma e ao coração – um apelo bem-vindo por si mesmo – mas um apelo que foi feito em contraponto à necessidade de nos afastarmos da consideração ‘das teorias, dos sistemas e das estruturas’, apelo que só pode ser interpretado como uma crítica à demasiada atenção dado ao relatório independente.

O relatório foi de resto apenas positivamente citado no contexto de uma reivindicação de meios orçamentais para a floresta, o que não é de forma alguma a conclusão que se pode tirar da sua leitura. Se esses meios não forem empregues em estratégias radicalmente diversas, servirão apenas para alimentar vícios e ilusões.

O relatório foi feito, compreensivelmente, numa lógica de curto prazo, sobre incêndios particulares, dedicando muito mais atenção ao exame minuto a minuto aos acontecimentos de Pedrógão que às estratégias nacionais de ocupação do solo, e era isto em qualquer caso o que se pretendia.

Para que serviu, então, o relatório e a comissão independente?

Imensas lições pontuais e gerais se podem retirar do que ali está escrito, e é absolutamente incompreensível que se passem as mesmas em silêncio.

Talvez a mais bombástica é relativa à empresa SIRESP ‘Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal’ que o relatório aponta basear-se num sistema tecnologicamente obsoleto e tecnicamente absurdo (antenas fixas) confirmando assim as suspeitas existentes sobre esta empresa típica da construção político-financeira do nosso país.

Obviamente que este relatório implica agora saber quanto custou o SIRESP e quem é responsável por este escândalo. Mas sendo o SIRESP um dos subprodutos da rede BPP/SLN/GES é significativo o silêncio sepulcral da imprensa e dos responsáveis políticos sobre esta conclusão do relatório.

E depois, temos a clara mensagem de que os sistemas de eucaliptal e pinhal intensivo estão na base do problema, e que sistemas ecológica e humanamente adaptados às condições do país são a solução de longo prazo.

Mas esta mensagem, tecnicamente sólida, tão pouco interessa que seja ouvida, e foi assim literalmente incinerada na fogueira demagógica lançada após os incêndios.

O relatório escalpeliza também a razão de ser da ignição dos fogos, ou seja, aquilo que leva a que situações pontualmente desastrosas se tornem em desastres. E aqui, confirma o relatório que uma parte significativa dos fogos decorre de ‘vandalismo’ e de ‘intenção criminosa’.

Não é com efeito possível que a justiça portuguesa ignore a gravidade destas actuações. O vandalismo que destrói um equipamento público como uma paragem de autocarro é inaceitável, mas muito menos aceitável é o que destrói a natureza, os bens e as pessoas.

E depois temos as razões involuntárias, como as queimadas ou as descargas de cabos eléctricos. São domínios onde não podemos continuar a ter a mesma indiferença que temos tido até aqui.

Quanto à falta de tratamento das matas, e cumprimento da lei em matéria de perímetros de segurança é fundamental que aqui se trate também da responsabilidade inerente à propriedade, e que a forma caótica como esta é tratada no nosso país tem muito peso na situação que enfrentamos.

Acresce a isto que um relatório de natureza mais estratégica terá também de tratar da questão do desenvolvimento rural, compreendendo aqui valências que vão do turismo às pequenas produções da agro-silvo-pastorícia. Também terá de tratar da substituição das queimadas por meios ecologicamente mais eficazes de destroçamento de resíduos ou ainda a substituição de fogos-de-artifício por formas mais modernas e menos perigosas de celebração de eventos.

Quem queremos que nos represente?

O ser humano mentalmente são é um ser com emoções, com alma e coração, e é fundamental que os nossos dirigentes políticos sejam plenos de humanidade.

Mas manipular a emoção para que a razão não se faça sentir é absolutamente deplorável. O problema com que nos confrontamos transcende em muito os jogos e construção de cenários ou factos políticos; o problema está em ter a visão, a vontade e a capacidade de reformar o país e as suas práticas.

Gostaria de ter visto o senhor Presidente da República a colocar-se acima do debate político-partidário parlamentar, com capacidade para apontar vias de reforma, responsáveis capazes de pensar estratégias políticas diferentes numa Comissão Nacional do 15 de Outubro, com base na que produziu o anterior relatório, mas não foi isso o que vi.

A continuarmos assim, mude ou deixe de mudar quem está no governo, só os rumos do clima poderão evitar que tragédias piores do que as que assistimos este ano se repitam.

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