Com um sentido de humor que retrata o que há de melhor na velha tradição jornalística portuguesa, o excelente profissional da comunicação social portuguesa de há tempos exilado no Brasil – imagino que por razões que a razão desconhece – e que o Tornado em boa hora fez regressar ao convívio dos portugueses, deu-nos uma tirada de ‘imprensa falsa’ ou ‘inimigo público’ se preferirem, que explicou melhor que ninguém e em dois tempos o drama do défice democrático europeu, com uma alegoria euro-britânica ao drama hispano-catalão.
E, no entanto, se excluirmos vultos do pensamento democrático europeu como Joan Garcez – que previu com rigor a actual crise constitucional espanhola há mais de um ano, em artigo republicado no Tornado, El derecho a decidir de los españoles – a esmagadora maioria das nossas elites tem-se fechado num casulo (que em tudo faz lembrar o casulo recentemente construído para albergar o Conselho Europeu em Bruxelas) que acha que a democracia se faz nas costas dos cidadãos e recorrendo a uma cada vez mais complexa e prolixa institucionalização.
Os direitos fundamentais elite europeia
À elite europeia não ocorreu que criminalizar a opinião em matéria de nacionalidade – como de resto seria o caso da opinião noutras matérias – é contrário aos direitos fundamentais consagrados no Tratado da União Europeia.
Tão pouco parece ter ocorrido a essa elite europeia que os direitos fundamentais não são matéria para se delegar a uma agência, como o fez a União Europeia com um obscuro seu departamento sediado em Viena de Áustria. São matéria para todo e qualquer responsável político europeu ter absolutamente presente em toda a sua acção! Trata-se aqui, claramente, de direitos fundamentais, que devem o seu nome a isso mesmo, estar na fundação da construção política europeia.
E a questão não pode de forma alguma ser confundida com a valoração que resolvermos fazer de qualquer opinião nesta matéria. Por outras palavras, o debate sobre o direito democrático dos catalães a dizer que não querem ser espanhóis não pode ser confundido com a opinião de cada um sobre a constituição deste ou de qualquer outro novo Estado na Europa.
Se alguém entender vestir-se com um fato azul às riscas amarelas, poder-se-á, naturalmente, não concordar com a sua opinião estética; mas perseguir esse alguém apenas por esse facto é absolutamente inaceitável.
Reacção do Presidente Marcelo deveria ser mais cautelosa
Se considero – por razões que se prendem com a sensibilidade histórica da posição portuguesa no contexto ibérico – que os representantes institucionais portugueses devem manter nesta matéria uma posição de grande prudência e alguma discrição, não creio ser legítimo que, quer o Presidente da República quer o Primeiro-ministro, tenham assumido acriticamente o papel de papagaios das instituições espanholas.
Ignoro se concertaram posições – o que a meu ver deveriam ter feito – mas creio que nesta matéria é o Presidente da República que deve falar pelo país. Não desculpando nenhum deles, penso que as responsabilidades cabem essencialmente ao nosso Presidente da República.
Com a saída da liderança do PSD de Passos Coelho, o actual Presidente de Portugal, mas líder histórico do PSD, parece ter atingido um dos seus objectivos e mudou radicalmente de posicionamento político. Como acertadamente opinou Francisco Assis, temos agora uma nova geringonça tolerada pelas formações à esquerda mas protagonizada por um novo bloco central feito pelo líder de facto do PSD e o líder de direito do PS; e o problema é que o bloco central não reconhece princípios, só conhece interesses.
Portugal faz assim tábua rasa de princípios, aqui em plena sintonia com a Europa que temos. Ficou também agora claro como a construção de um edifício legal europeu sem uma sólida base de direitos fundamentais pode resultar num nivelamento por baixo dos direitos, liberdades e garantias.
É a Europa que queremos?
Uma das acusações feitas às autoridades catalãs é a de desvio de fundos. Nada a estranhar por parte de regimes autoritários. Praticamente sem excepção, da Rússia de Putin à China de Xi, passando pelos generais tailandeses, ditadores venezuelanos, militares paquistaneses ou monarcas sauditas, a perseguição de dissidentes ou o saldar das contas internas faz-se em geral com base nessa acusação.
A partir do momento em que a legislação europeia considera como automático um mandato de captura europeu com base nessa acusação, o resultado é o da perseguição em todo o solo europeu feita pelo mais autoritário dos seus regimes. E assim a Bélgica, durante séculos terra de exílio preferencial, corre o risco de o deixar de ser ou sê-lo de forma muito condicional.
A construção burocrática da Europa à margem dos cidadãos e à margem da observância dos direitos fundamentais remetidos para Viena resulta nisto, e é por isso que eu, convicto partidário de um federalismo europeu como imaginado pelos pais fundadores da Europa, há muito me distancio deste percurso e desta perspectiva.
Como o afirmei a semana passada, a procissão vai no adro. Ouvem-se já as vozes de Madrid que reclamam da asneira de Rajoy em ceder a marcar eleições, quando no seu entender se deveria apenas privar os catalães do direito de votar. É uma opinião que não deve ser tomada à letra, antes sendo um convite para que se utilizem todas as formas possíveis para torpedear as eleições – como por exemplo a ilegalização de partidos ou a não elegibilidade de dirigentes catalães e a invenção de partidos catalães made in Madrid.
Os militares vieram também já a terreiro falar, não se limitando a ver os dirigentes políticos a actuar de acordo com as suas directrizes, confirmando também o que escrevi. Aqui, a esquerda parlamentar, o Podemos manifestando um arrependimento que demonstra hipocrisia ou falta de inteligência, o PSOE nem isso, têm contribuído pesadamente para o agravar da situação.
E como finalmente acabaram por entender os cidadãos europeus, estamos perante uma gravíssima crise europeia que coloca em causa o que há nela de mais fundamental. Não há volta a dar, é essencial entendermos a dimensão do desafio que enfrentamos.