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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

António Gervásio

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

(N.1927)

Cidadão da Resistência antifascista, homem de grande coragem e determinação, terá sido um dos presos mais violentamente torturados pela polícia política. Integrado no PCP, e depois, dezenas de anos na sua direcção, dedicou toda a sua vida à luta contra o fascismo e o capitalismo. Estava preso no dia 25 de Abril de 1974. Já em Democracia bateu-se tenazmente pela concretização da Reforma Agrária. Evidenciou sempre grande lucidez política.

Uma vida de resistência e luta

António Gervásio nasceu a 25 de Fevereiro de 1927 em Montemor-o-Novo, numa família pobre, de operários agrícolas. Em 1945 aderiu ao PCP, tendo passado à clandestinidade no Verão de 1952. Foi preso três vezes, sempre por denúncia: em 1947, em 1960 e em 1971. Desta última prisão saiu com o 25 de Abril, depois de ter estado preso cinco anos e meio. Nas prisões de 1960 e 1971 foi brutalmente torturado, com espancamentos até à perda de sentidos. Na última prisão foi impedido de dormir durante 18 dias e 18 noites seguidos, cerca de 400 horas.

Em Maio de 1961, foi espancado em pleno tribunal por denunciar as torturas da PIDE.No final desse mesmo ano, participou na fuga de Caxias juntamente  com outros militantes comunistas.

Em 1963 foi eleito para o Comité Central, onde permaneceu até ao XVII Congresso do Partido (2004).

Depois da Revolução, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte pelo distrito de Portalegre e, em 1979, foi deputado da Assembleia da República pelo distrito de Évora. Participou directamente em todo o processo da Reforma Agrária e na luta pela sua defesa.

Até meados de 2006, António Gervásio foi membro da Direcção da Organização Regional de Évora do PCP e responsável pela organização concelhia de Montemor.

Sujeito às mais bárbaras torturas

Os seus interrogatórios na PIDE são impressionantes exemplos da barbaridade das torturas a que alguns presos políticos foram sujeitos pelos torcionários da PIDE. Em 1960 foram várias as sessões de tortura a que António Gervásio foi submetido e numa delas esteve durante 14 horas a ser espancado com paus. No fim, não cabia na roupa. As equimoses com que ficou nas coxas e nas costas perduraram durante mais de uma ano. Nada lhe abalou a determinação em não trair os seus camaradas ou amigos. Durante um mês não conseguia baixar-se para se sentar ou fazer as necessidades. E em 1970, na terceira prisão, esteve 18 dias e 18 noites em tortura do sono, sem nunca dormir. «É uma tortura terrível, que não há palavras que expliquem» – disse em entrevista recente (2011).

Entrou para o PCP durante grandes lutas do proletariado agrícola

O PCP, a seguir ao golpe fascista de 1926 e até à década de 40, atravessou grandes dificuldades, , mas a partir dos anos 40, quando se realizaram os 3º Congresso (1943) e o 4º Congresso (ilegal, em 1946), tornou-se um partido nacional e no Alentejo e no Ribatejo, iria implantar-se com grande força[1] . No início dessa década, aos 15 anos, António Gervásio teve os primeiros contactos com o partido comunista através dos jornais “O Camponês” e o “Avante”.

O Alentejo era uma zona de forte concentração do proletariado agrícola, havendo herdades com centenas ou mesmo milhares de trabalhadores, pessoas sem direitos, que trabalhavam de sol a sol, que passavam períodos longos de desemprego, de miséria e de fome e com choques constantes com o Governo e com as polícias fascistas. Conscientes desta realidade, os trabalhadores procuravam apoio político para as lutas que travavam e o PCP procurava dar-lhes resposta. Foi nesse quadro de combates que, aos 25 anos, António Gervásio  aceitou entrar para funcionário do partido, ao ser convidado a ingressar no quadro clandestino daquela organização. Consciente de que o devia fazer mas, também, de que estava dar um passo de grande responsabilidade na sua vida. O medo de ser preso ou mesmo morto foi um factor que ponderou (no Alentejo, já tinham sido mortos seis funcionários), esteve hesitante, mas Octávio Pato conseguiu convencê-lo. Foi preso em 1947.

A dura clandestinidade no Alentejo

Gervásio ficou no Alentejo até à segunda prisão, em 1960. Mudou o nome, tinha documentos falsos e procurava morar sempre em meios maiores, para melhor passar despercebido. Foi assim que viveu clandestinamente, ao serviço do PCP, em Évora, em Beja, em Estremoz. Esteve ligado ao proletariado agrícola, mas também a organizações da juventude e sobretudo ao MUD juvenil[2]. Depois, dada a sua experiência nas lutas dos trabalhadores agrícolas, nomeadamente na grande luta das ceifas, regressou à actividade de direcção clandestina da «luta pelas 8 horas de tabalho». Antes, já havia estado na organização de grandes manifestações de rua e de desfiles contra os períodos longos de desemprego. Nessa altura, foram muitas as vezes em que teve de fugir, abandonar a casa onde vivia, mudar de terra, quando os vizinhos começavam a questioná-lo acerca do que fazia, qual a sua profissão. Era tudo feito de bicicleta, com alguns troços do trajecto feitos em camioneta, com a bicicleta no tejadilho. “Cortava o Alentejo todo de bicicleta”. Houve um período, finais dos anos 50, em que percorria cerca de dois mil quilómetros por mês.

Da fuga de Caxias para a organização de milhares de trabalhadores na «luta pelas 8 horas do dia de trabalho rural»

Foto da entrevista citada na biografia. (No centro de trabalho do PCP, em Montemor. Foto de António Carrapato)

Em 1960 António Gervásio foi preso, julgado e condenado em tribunal plenário.

Em Dezembro de 1961 participou na célebre fuga do Forte de Caxias, no carro de Salazar, juntamente com sete outros membros do PCP. O País seguiu o feito com entusiasmo e alguma perplexidade. Parecendo uma aventura a quem, então, tomou conhecimento do acontecimento pelos jornais, na verdade, essa histórica evasão demorou muito tempo a preparar, e foi concebida ao pormenor[3].

Depois da fuga António Gervásio retomou as ligações que tinha anteriormente e foi a partir do Barreiro que participou nas grandes lutas dos ferroviários e ajudou a conduzir a luta pelas «8 horas de trabalho» que tinha sido interrompida.

Quando fugiu da prisão esteve alguns dias em Lisboa e depois foi viver para uma «casa de apoio» no Barreiro. Aí, com um companheiro, fez o jornal o “Camponês” com uma separata sobre a «luta pelas oito horas de trabalho», de que distribuíram milhares de exemplares. A greve iria iniciar-se no dia 1º de Maio de 1962. A «Rádio Portugal Livre» noticiou de imediato a greve (havia um esquema muito rápido de comunicação das notícias para Bucareste) e teve um papel fundamental nessa mobilização, ao emitir um apelo que foi determinante do êxito daquela luta: “Trabalhadores agrícolas! No 1º de Maio de 1962 ninguém trabalha mais de sol a sol. E onde os proprietários ou os seus encarregados se opuserem, os trabalhadores impõem as oito horas”. Assim aconteceu e, de imediato, todos os trabalhadores do litoral (Alcácer, Comporta, etc. – muitos milhares), obtiveram este horário; depois, a luta espalhou-se até Montemor e a todo o Alentejo e Ribatejo. Pela primeira vez, os trabalhadores iriam sair com sol de casa e chegar a casa com sol. A greve, que efectivamente começou no 1.º de Maio, foi incendiando os campos e António Gervásio esteve na direcção dessa histórica luta . Falaram com os ranchos de algarvios e beirões que se deslocavam para a zona de Montemor na altura das ceifas, mobilizando-os com uma mensagem clara: ou alinhavam com as 8 horas ou não poderiam ali trabalhar. A grande maioria aderiu e outros houve que regressaram às suas terras[4]. A luta foi muito violenta e desencadeou uma grande repressão, porque era a primeira vez que os trabalhadores se atreviam a desafiar os agrários e, também, a própria ditadura.

«Isso foi muito debatido e discutido: como é que os agrários vão reagir, como é que a ditadura vai reagir a uma reivindicação destas? Mas as 8 horas eram uma aspiração profundamente sentida pelos trabalhadores. E 1962 já não era 1940 ou 1950. Nós tínhamos fortes organizações por todo o Alentejo. Não havia nenhuma localidade do Alentejo e também do Ribatejo que não tivesse uma organização do partido ou, pelo menos, uma ligação» 

A libertação na madrugada de 27 de Abril

Gervásio encontrava-se no Forte de Peniche, a cumprir pena, quando soube da Revolução pelo próprio director do Forte.

António Gervásio só viu a Liberdade na madrugada de 26 para 27. «Foi uma coisa espantosa. Agarrámo-nos uns aos outros, contentes, mas ainda sem muitas certezas. Nós já tínhamos observado que os carcereiros, naquela manhã, não traziam pistola, só trazia cassetete e estavam de “moco” caído. Também nos apercebemos de que havia tropas ao pé do Forte e quisemos saber que tropas eram e o que se estava a passar ali dentro, porque a PIDE podia aparecer ali dentro com uma metralhadora e fuzilar-nos a todos. O golpe até podia ser fascista. Depressa, através das nossas redes, conseguimos saber que o forte estava guardado por fuzileiros navais e que o chefe de guardas, que era um tipo terrível, da PIDE, estava desarmado e cada passo que dava era acompanhado por militares. Foi uma grande alegria quando ligámos, mais tarde, a rádio e ouvimos a Grândola Vila Morena.»

Depois da Revolução a Reforma Agrária

Depois da Revolução esteve ligado à Reforma Agrária. Comentou na referida entrevista ao “Diário do Alentejo” (2011): «Fala-se muito em erros da Reforma Agrária, mas o grande erro foi a ofensiva da direita que destruiu a reforma agrária. Há sempre erros, porque um processo desta dimensão, tão vasto e sem nunca ter acontecido tem que ter erros. Mas não foram esses erros que destruíram a Reforma Agrária»

António Gervásio continua fiel aos seus ideais de sempre, considerando que a única solução para as crises do capitalismo é substituir um sistema que assenta na exploração do homem pelo homem por um sistema social diferente, em que os meios de produção sejam do Estado, sejam propriedade social e não propriedade de alguns[5].

António Gervásio avança na idade sem perder de vista a evolução da situação social e política do País[6].

A homenagem

Em Março de 2007, no seu 80ª aniversário, foi homenageado num almoço em Montemor-o-Novo, por amigos e camaradas. Maria Lourença, a sua companheira estava ao seu lado. Estiveram presentes muitos conterrâneos e camaradas seus do concelho. Do resto do País foram largas dezenas de pessoas: velhos companheiros da luta clandestina, dirigentes e militantes do PCP, familiares e amigos. Usaram da palavra José Casanova e o responsável pela Direcção Regional do Alentejo. Na sua intervenção, António Gervásio destacou alguns dos seus camaradas: Américo Leal que, juntamente com Octávio Pato, o convenceu a entrar para funcionário do Partido; Teodósia Vagarinho, que ele próprio recrutou para a clandestinidade; Domingos Abrantes, Ilídio Esteves e António Tereso, com quem fugiu de Caxias; Sofia Ferreira, que conheceu em Lisboa, na clandestinidade; António Dias Lourenço e Carlos Costa, com quem trabalhou ao longo de muitos anos e que com ele partilharam os cárceres fascistas.

Quando lhe perguntam se ser alentejano tinha, para ele, algum significado especial, respondeu que não: « (…) O povo tem algumas características próprias e uma delas prende-se com o facto do fascismo nunca ter conseguido penetrar aqui, nem a mocidade portuguesa, nem a religião se implantou aqui com a força como se implantou no norte. Nessa perspectiva, acho que o nosso Alentejo é bom. É um povo solidário»

Publicações

  • António Gervásio / Francisco Miguel, Pela reforma Agrária; A Terra a quem a trabalha, Lisboa, Edições Avante!, 1975
  • António Gervásio, O P.C.P e a Resistência contra a ditadura fascista no concelho de Montemor-o-Novo, Montemor-o-Novo, 1994
  • António Gervásio, Lutas de Massas em Abril e Maio de 1962 no Sul do País, Lisboa, Edições Avante!, 1996
  • João Madeira / Luis Farinha, “Golo!”. Entrevista com António Gervásio”, História, 28, Setembro 2000

[1] Houve anos em que o PCP foi muito afectado por ondas repressivas e pela prisão de vários dos seus dirigentes e funcionários, mas apesar disso foi-se enraizando no proletariado agrícola e nas populações destas zonas.

[2] O MUD Juvenil chegou a ter milhares de membros e teve grande influência no Alentejo, sobretudo em Beja.

[3] António Gervásio reviveu a situação em entrevista (ainda com emoção): «Se alguma coisa falhasse estava tudo perdido. Se, por exemplo, o carro tivesse batido no portão éramos fuzilados logo ali. Eles dispararam muitas vezes, mas o carro era à prova de bala e as balas faziam ricochete»

[4] António Gervásio disse na já citada entrevista (2011): « A luta pelas 8 horas de trabalho foi um processo muito longo, que começou vários anos antes de 1962. Levou cinco anos a preparar, com muitas e muitas reuniões. Só eu, fiz centenas de reuniões e, no total, éramos cinco funcionários do partido ligados a este processo aqui no Alentejo e Ribatejo. As reuniões aconteciam sobretudo à noite e tudo era discutido com os trabalhadores. Todas as decisões que tomámos não foram decisões de gabinete, mas sim o resultado de muita discussão»

[5] «Não é preciso grandes coisas, nem guerras civis para que isto aconteça: basta haver um poder que tenha força suficiente para tirar aos grandes grupos económicos as alavancas da economia. Quando os bancos, as grandes empresas, os transportes forem propriedade do Estado acaba a exploração do homem pelo homem. Para se viver não é preciso que um homem explore outro homem»

[6] «A sensação que tenho é que a situação que o nosso país vive, de desemprego e de crise económica, não pode durar 10 anos. (…) A situação que estamos a viver é inaguentável com o país a pagar mais de juros do que o que produz e com o sector produtivo quase parado»

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