Tomo como referência para este texto – publicado no penúltimo dia do FESTIN / Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, que este ano decorre em terras timorenses, e que há dias foi referido aqui, no Jornal TORNADO – dois eventos a que assisti nesta semana e nos quais Timor-Leste e o seu povo têm um papel central. Afinal, a evocação de dois períodos em que aqueles cenários idílicos e um povo afável e acolhedor foram palco e vítimas de acontecimentos trágicos e dolorosos.
A vida da família de José Afonso nos anos da 2ª Guerra Mundial
O primeiro foi o visionamento de “Rosas de Ermera”, numa das sessões em que o filme foi exibido do Porto.
No início dos anos 80 o cineasta Luís Filipe Rocha, ainda em vida do seu amigo muito próximo José Afonso, alimentava a ideia de fazer um filme sobre a vida, nos anos da 2ª Guerra Mundial, da família do cantor, músico, poeta e activista político. O projecto foi concretizado passados cerca de trinta anos e assinala um regresso do autor ao documentário, uma área na qual iniciou a sua actividade no cinema, logo a seguir a Abril de 1974.
Falecido em Fevereiro de 1987, José Afonso é naturalmente figura recorrentemente referida ao longo do filme, mas obviamente ausente das filmagens realizadas já na presente década e que recolhem os depoimentos do seus irmãos, João e Mariazinha. Esta última e Timor (local a que ela regressou levada pelo realizador) assumem, de resto, papéis muito relevantes neste reavivar de memórias.
Em 1939, os três irmãos – João, José e Mariazinha – com 11, 10 e 7 anos, viviam com os pais em Lourenço Marques. O pai era uma figura austera. Como na maior parte das casas portuguesas, para se levantarem da mesa, os filhos tinham que pedir licença. E o Zeca, já irreverente, fazia o pedido mas acompanhado de ‘continência´. Nessa altura, o pai, jurista na administração portuguesa, participou num concurso para obter colocação como Juiz e, como explica Mariazinha em “Rosas de Ermera”, escolheu Díli, porque “se ganhava mais e tempo contava a dobrar”.
Só que havia um problema: em Díli não havia liceu. E então a família separa-se. Os pais e a filha mais nova seguem para Timor e os rapazes vão para Coimbra. Aí ficam em casa da tia Avrilete, separada do marido mas uma ‘beata’ muito devota. Uma casa habitada por mulheres e pelos dois rapazes. Rezava-se o terço todos os dias. Para trás tinha ficado o paraíso africano e o cão ‘Leão’, companheiro de aventuras.
Poucos meses após a separação começa a 2ª Guerra Mundial. Os laços entre os rapazes de Coimbra e os pais e a irmã em Timor são alimentados graças a abundante correspondência escrita, Só que, em 1942, Timor é invadida pelos japoneses, permanentemente sobrevoada, às vezes bombardeada e é também campo de actuação da guerrilha australiana.
Mariazinha, agora octogenária, rememora (e revive, com Luís Filipe Rocha) as sucessivas fugas no território timorense para locais supostamente mais seguros, incluindo campos de concentração e abrigos anti-aéreos, mas também a fome e sobretudo o cheiro das rosas de Ermera que nunca saiu da sua memória.
O irmão João recorda a vida coimbrã, ele mais por casa e o Zeca, sempre que o conseguia, mais junto dos amigos que ia fazendo. E também os tempos que passavam em Belmonte, com o tio Filomeno, um tipo franquista e germanófilo mas com o qual simpatizavam à conta da permanente boa disposição e da sua propensão para as festas e para a música.
Entretanto as cartas foram sendo cada vez mais raras e a certa altura deixaram de existir. João e José passaram a ser tratados como órfãos e pensavam que os pais e a irmã tinham morrido. Mas, em 1945 terminou a guerra com a derrota dos alemães… e também dos japoneses.
Chegam novamente a Coimbra notícias de Timor e em Fevereiro de 1946 dois rapazes, de capa e batina (segundo João Afonso, na época ‘uma segunda pele’ dos estudantes de Coimbra), estão no cais, em Lisboa, esperando a chegada do navio em que vinham os pais e a irmã.
Como agora esta refere, para trás ficou Timor. Terra de dor mas também de muita felicidade. Afinal foi lá que viveu a sua infância. João e Zeca num terão ido a Timor mas voltaram a Moçambique como tive oportunidade de referir em texto que escrevi no TORNADSO sobre José Afonso, José Cardoso e o cinema moçambicano.
‘Rosa de Ermera’ é um filme escorreito, pleno de emoção, salpicado por alguns momentos que nos fazem sorrir. Talvez um pouco longo e com alguns episódios repetidos, referidos no depoimento de Mariazinha e novamente contados durante a visita a Timor. Em todo o caso, um belo exercício de resgate da memória e a evocação de um período muito difícil na vida de uma família e do território sob administração portuguesa que mais sofreu durante a 2ª Guerra Mundial.
Rostos de timorenses em 1999
Ainda com dor mas também já esperança num futuro melhor
O segundo evento que hoje refiro é ‘Expressões Lorosae’ – Fotografia de Vítor Cordeiro, uma exposição que nos últimos anos esteve patente em vários locais e instituições e que anteontem chegou às instalações da EDP, no Porto, onde estará patente até 31 de Dezembro.
Vítor Cordeiro é engenheiro electrotécnico. Dedica à fotografia muitos dos seus tempos livres.
Em 1999, pouco depois do referendo que decidiu a independência de Timor-Leste chegou a Díli para, em representação da EDP, trabalhar no levantamento, reorganização e reconstrução do sector eléctrico timorense, completamente destruído pelos ocupantes indonésios na altura em que saíram daquele território. Num tempo em que três quartos das habitações de Díli estavam destruídas e todas tinham sido saqueadas, Vitor Cordeiro percorria o território e encontrava redes e centrais eléctricas destruídas, que logo procurava pôr a funcionar, mas também populações marcadas por anos de ocupação estrangeira, guerra, morte e destruição. Mas gente já com esperança numa vida melhor cuja concretização estava a dar os primeiros passos.
São dessa altura – os últimos três meses de 1999 e Janeiro de 2000 em que esteve em permanência em Timor e conseguiu pôr a funcionar a maior parte dos equipamentos de produção de energia eléctrica –, as fotografias expostas.
Fotografias a preto e branco, em película, reveladas e impressas pelo autor. Cerca de duas dezenas de entre as centenas que Vítor Cordeiro captou em Díli e no restante território de Timor-Leste. Todas têm uma história por trás e todas mostram rostos expressivos de crianças e adultos, novos e velhos, homens e mulheres, pelos quais perpassa a tristeza, a espera e às vezes um sorriso de alegria e de esperança num tempo novo que se anunciava.
Registo de uma época de mudança, os primeiros meses do tempo que mediou entre o referendo e a independência que haveria de chegar em Maio de 2002. O início da reconstrução.
‘Expressões Lorosae’ é uma exposição de fotografias de grande qualidade técnica e estética, mas sobretudo, uma manifestação de humanidade e de cumplicidade entre povos que a História tornou irmãos.
Na abertura da mostra agora patente no Porto estiveram, além de um representante do Embaixador de Timor-Leste em Portugal, o chefe da Missão Portuguesa em Timor no período 1999/2000, Dr. Rui Silva, e o Bispo Emérito e Prémio Nobel da Paz, D. Ximenes Belo, que agora reside no Porto.