A liberdade de expressão é um princípio fundador dos direitos do cidadão com os quais foi sendo construída ao longo dos últimos séculos a sociedade liberal e democrática em que nos inserimos e é talvez aquele que melhor a define. Erraremos contudo se pensarmos que se trata de um dado adquirido e uma questão arrumada.Tivemos recentemente na comunidade portuguesa um exemplo claro do que ela significa e das implicações que nos traz com a comparação das tragédias das inundações de 1967, largamente censurada pelo regime autoritário, com as dos incêndios de 2017, que preencheu grande parte do nosso panorama informativo.
A liberdade de expressão não significa que se atinja qualquer estágio de perfeição social, mas apenas que se atinge aquilo que consideramos o menos mau dos mundos. A liberdade de expressão na mais recente tragédia resultou como sabemos na existência por vezes de proclamações infundadas e de pontos de vista e conclusões radicalmente diversos, muitos profundamente demagógicos.
Como sabemos também, uma parte importante do relatório independente relativo à tragédia continua a não estar disponível, por imposição da Comissão Nacional de Protecção de Dados que considera estarem em causa “informações pormenorizadas sobre cada uma das vítimas e das suas últimas horas de vida”, que “expõe as pessoas num grau muito elevado, afetando significativamente os direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais” (citado do Diário de Notícias).
É uma posição contestada pelo principal responsável pelo relatório independente e que serve para nos mostrar como os limites da liberdade de expressão são um tema de grande actualidade e importância e que de forma alguma a questão pode ser colocada no armário das conquistas adquiridas.
A liberdade de expressão é portanto um direito fundamental, mas sujeito a interpretações e limites mesmo nas sociedades livres e democráticas. Mais importante do que isso é termos em conta que boa parte do mundo não considera a existência de qualquer direito à ‘liberdade de expressão’ mas antes a expressão como um mero instrumento.
Costuma também dizer-se que a liberdade de expressão é a primeira vítima da guerra, noção que enfatiza o mais importante limite a esse direito fundamental. É nesse contexto que temos de olhar para a decisão da União Europeia de lançar um grupo de trabalho para a ‘comunicação estratégica a Leste’ data de Março de 2015 que, de acordo com a informação produzida pelo ‘Guardian’ só na recente ‘Cimeira de Parceria a Leste’ (final de Novembro de 2017) foi dotada de um orçamento autónomo anual de um pouco mais de 1 milhão de euros para o triénio 2018-2020.
Convém aqui ter em conta que o conceito de ‘estratégia’ tem origem etimológica na arte de comandar (ser general de) a guerra e que a comunicação é uma parte decisiva (por vezes mesmo quase exclusiva) de qualquer guerra, sendo a esse propósito útil também recordar que a vitória ideal é a que se obtém sem qualquer combate, exclusivamente convencendo, através de ‘comunicação estratégica’, o inimigo de que este está derrotado à partida.
Quer isto dizer que é mais fácil conceber a ‘comunicação estratégica’ no contexto do exercício de guerra que fora dele. A esse propósito, convém também recordar que o conceito de guerra fria quer fundamentalmente dizer isso mesmo, uma guerra que se faz fundamentalmente sem utilização real de armas, apenas no domínio da comunicação.
Neste exercício, o que aparece como assaz fora do comum é exactamente essa percepção de que a União Europeia terá apenas agora acordado para essa realidade, e mesmo assim de forma extremamente lenta e apenas centrada nos nossos vizinhos russos. Mais ainda, temos a imagem da comunicação estratégica como sendo a que se dedica apenas a ataques informáticos e à desinformação, ou seja, à reprodução de mensagens que têm como objectivo transmitir o oposto da realidade.
A complicar substancialmente a forma como esta questão se coloca temos ainda a emergência das redes sociais, que alteraram profundamente o panorama comunicacional no nosso mundo, e sobre as quais temos assistido a um ataque concertado por parte da comunicação social institucional e de alguns países como a Alemanha.
Especialmente absurdo é esquecer-se que a principal estratégia de comunicação contra os nossos valores civilizacionais tem sido conduzida pelo que eu chamo de ‘Jihadismo Orgânico’ ou seja, aquele que combina a ideologia jihadista com uma estratégia consequente de conquista do poder.
Pior ainda é supor-se, como por exemplo o faz num dos seus textos a ‘Fundação Robert Schuman’, que a Rússia pretende desinformar o Ocidente apresentando-lhe como inimigo o jihadismo e que possamos ver o ‘Estado Islâmico do Iraque e do Levante’ como o jihadismo orgânico, e não como uma imitação do original, o Estado Islâmico Iraniano.
Esta iniciativa europeia apresenta-se assim como duplamente preocupante, porque manifestamente insuficiente, limitada, enviesada, tardia e ingénua se considerada no domínio da ‘comunicação estratégica’ e por outro lado potencialmente intrusiva e pouco balizada pelos princípios de um Estado de Direito se considerada como forma de alcançar a ‘verdade’ e combater a ‘desinformação’.