De vez em quando, ocorre-me que a minha formação inicial é médica e que tenho capacidade e interesse para escrever sobre coisas da saúde.Mas começo por uma consideração mais geral, sobre o irracionalismo. É um grande paradoxo dos nossos tempos que, com tal desenvolvimento da ciência e com toda a solidez das bases metodológicas e de teoria do conhecimento, que, sem esquecer os gregos, nos vêm já desde o iluminismo, ao mesmo tempo campeiem as mais diversas manifestações de irracionalismo, em boa parte amplificadas pelas redes sociais.
São os mais diversos esoterismos, o culto do mistério e dos segredos iniciáticos, a proliferação de seitas religiosas, as teorias de conspiração, etc. Se até as televisões, em programas de maior audiência, não dispensam videntes e tarólogas, versão sofisticada e mediática da velha cigana a ler a palma! Não tenho a certeza, mas julgo que até a RTP1, de serviço público…, tem a colaboração regular de uma dessas senhoras e “profissionais”.
Na saúde, vivemos uma época de enorme crescimento da investigação em ciências biomédicas, a facultar bases de conhecimento e de aplicação que revolucionaram a compreensão, o diagnóstico, a prevenção e o tratamento das doenças. Nos meus tempos de estudantes e jovem médico, a medicina ainda era muito empírica. Hoje, o padrão é o da chamada medicina baseada na ciência.
Não se quer dizer que só a ciência nos conduz à verdade e muito menos a uma verdade absoluta, inexistente. Mas, indiscutivelmente, e sem prejuízo de outras formas de aquisição de conhecimento ou de elaboração mental (filosofia, arte), a ciência é hoje a melhor aproximação para a explicação e para a previsão do (ou dos?) universo e, nele, do homem. Além do mais, é a única forma de conhecimento que tem em si a possibilidade de se refutar, aceitando emendas ou mesmo revisões profundas, como foi com a relatividade ou a mecânica quântica. É mesmo essa refutabilidade, também dita falsificabilidade, muito discutida por Karl Popper, que melhor define a natureza da ciência.
Isto é impossível, por exemplo, com a religião e, de uma forma geral, com os sistemas de pensamento absolutos e eternos. Nunca se viu, e creio que nunca se verá, a teologia, usando métodos teológicos, emendar as ideias geradas pela fé ou pelas diversas revelações divinas (ou “fatimais”).
Falando de irracionalismo em medicina ou saúde ocorrem-me logo a atitude antivacinal (“antivax”); os muitos regimes dietéticos sem fundamento e muitas vezes perigosos, com o seu comércio de suplementos, extractos e mais, geralmente muito mais caros do que os equivalentes vendidos como medicamentos; e as medicinas alternativas. Os dois primeiros casos dão pano para mangas de discussão. Fiquemos por ora com as medicinas alternativas.
Há casos em que o seu fundamento é tão delirante que nem vale a pena a discussão, ou por se estar a falar com pessoas sensatas ou então com fanáticos com quem, em todos os casos, discutir é perder tempo, coisa cada vez mais preciosa, na minha idade. Por exemplo, a iridologia postula que toda a nossa saúde, o estado normal ou patológico de cada órgão ou da mente, estão descritos, como num código de barras, nas riscas aleatórias (matemática do caos) da nossa íris. Medicina fácil e expedita: tira uma fotografia aos olhos, manda-ma com um cheque e vai de volta o diagnóstico e a receita.
O mesmo para outras fantasias de sinalização do estado dos órgãos em zonas distantes, como pontos nos pés, nas orelhas, na palma das mãos ou em pontos nos ossos e articulações (“osteopatia”). Esta última e uma sua relacionada a “medicina” quiropráxica, até podem ter alguns benefícios quando a manipulação alivia uma dor local, mas certamente não tem nada a ver com diabetes ou doença das coronárias e bem pode causar um AVC por traumatismo das artérias vertebrais.
Note-se que, em geral, estas e outras medicinas alternativas não resultam de uma experiência longamente acumulada, mas da mente e fantasia de um único homem, muitas vezes por revelação divina.
Há que considerar três casos especiais, pelo impacto que têm: a naturopatia, a acupunctura e a homeopatia. O tratamento com produtos naturais é mais uma forma de medicina arcaica do que de medicina alternativa (excepto no que tem de rejeição filosófica ou ideológica da medicina). Claro que sempre esses produtos produziram efeito e que muitos medicamentos foram sintetizados a partir do conhecimento de produtos naturais. Simplesmente os medicamentos são puros, não estão misturados com outros produtos nocivos da mesma planta e são fabricados e severamente controlados para produzirem o máximo de efeitos terapêuticos com o mínimo de efeitos secundários, adversos. Da mesma forma o reiki, que não é mais do que um aconselhamento sobre o bem-viver físico e psíquico, coisa que todo o bom médico faz.
Nos outros casos, a apreciação do mérito do método pode ser teórico ou prático. Teoricamente, tanto a acupunctura como a homeopatia fundamentam-se em princípios que vão contra toda a evidência científica. A acupunctura baseia-se num princípio vitalista, qi, considerado como distinto de qualquer forma estudada de energia ou de estado da matéria, e circulando por meridianos, linhas no corpo que até vão sendo modificadas pela literatura da área. Nunca ninguém viu nada de anatómico, nem artérias, nem veias, nem nervos, seja mais o que for, que dê suporte material a esses meridianos ou a qualquer sistema de circulação de qi.
Teoricamente, também a homeopatia é um absurdo científico. Baseia-se no “princípio” de que uma substância nociva se converte em seu contrário, isto é, medicamento contra si própria, se diluída sucessivamente em água. O grau de diluição chega a ser superior ao número de Avogadro, o que significa que já não existe na solução nada a não ser água pura. Dizem então os homeopatas que essa água fica com memória. É preciso tratos de polé à inteligência e à cultura mínima para se ver como um átomo de oxigénio e dois de hidrogénio têm uma mente com capacidade de memória.
Mas a abordagem mais útil é a prática, a da análise dos propalados benefícios dessas “medicinas”. Há estudos favoráveis, mas habitualmente em pseudorrevistas científicas e patrocinadas pelos interesses económicos envolvidos. Dirão que o mesmo se passa com a indústria farmacêutica, mas não é no domínio das publicações científicas. A análise desses estudos mostra incongruências e erros metodológicos; e estudos científicos correctos e independentes não mostram mais do que efeito placebo (efeitos psicológicos da crença do paciente em que está a ser tratado).
Dito tudo isto, não se deve pensar que cada um é livre de escolher e pagar o terapeuta que quer? O problema é muito mais complicado, porque há custos para a saúde pública, para os contribuintes e para a credibilidade do sistema de saúde. É o que discutiremos na próxima semana.