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Sábado, Novembro 23, 2024

Uma bela história: Abradatas e Panteia I

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Nascido em Érquia, um demo da Ática (região de Atenas), cerca de 430 a.C., Xenofonte, e falecido em Corinto, em 355, foi soldado mercenário e homem de letras. Jovem, foi um dos notáveis discípulos de Sócrates. Como escritor, é um daqueles autores obrigatórios e clássicos que todo o estudante de Grego vem a conhecer, ler e traduzir. Com efeito, a sua prosa límpida, simples e clara fazem dela um belíssimo instrumento de aquisição de vocabulário e aprofundamento de estruturas, bem como de sensibilização para as virtudes estéticas desta língua. O seu estilo granjeou-lhe um epíteto: abelha ática. A explicação: abelha, obviamente, porque como o bom insecto, o produto do seu labor é doce; ática, por escrever neste dialecto[1]. Traduzir inculca nos espíritos frases, passos, trechos inteiros, histórias e episódios que jamais se apagarão das memórias. A sua obra, que sobreviveu na íntegra — circunstância feliz e rara entre os escritores da Antiguidade —, abrange uma pluralidade de temas e interesses: livros de carácter historiográfico, de filosofia política, de economia, testemunhos sobre Sócrates,  tratados técnicos. Entre estes últimos, um tratado sobre equitação, cuja influência perdurou por muitos séculos, até hoje.

Embora ateniense, não parece ter sido muito filateniense. Politicamente, era adversário do regime de que a sua cidade se gloriava, o democrático. Filho de Grilo, no seio de um família nobre (da ordem equestre), era partidário da oligarquia. É contemporâneo da Guerra do Peloponeso. Terminou esta com a derrota de Atenas, em consequência da qual foi posto fim à hegemonia ateniense entre os estados gregos, cedendo esta o lugar à espartana, e ao regime democrático, tendo em seu lugar sido instaurado um regime conhecido como dos Trinta Tiranos, com a duração de menos de um ano (em 404). Xenofonte, nas Helénicas, continua a história desta guerra, cujos primeiros vinte (de 431 a 411) de vinte e sete anos de duração, foram o tema da magna obra de Tucídides. As Helénicas cobrem os acontecimentos da história política e militar na Hélade até 362, ano da vitória de Tebas em Mantineia sobre Esparta, batalha em que, a despeito desta circunstância, o general vencedor, Epaminondas, recebeu uma ferida mortal.

Em 401, parte para a Pérsia. Ciro, o Jovem, infante persa da dinastia aqueménida, ambicionava depor do trono o irmão, Artaxerxes, e para tanto contratou milhares de mercenários, entre os quais mais de 10 mil gregos. Na batalha de Cunaxa, os mercenários gregos, sem uma única baixa, põem em fuga as tropas do rei mas, desgraçadamente, Ciro morre. Ficam os gregos sós, sem causa por que lutar. Na Anábase (literalmente, “subida”), Xenofonte relata as vicissitudes da retirada, a pé, dos 10 000 gregos (razão pela qual a obra é também conhecida como Dez mil) ao longo do imenso território persa até terra grega. Famoso o grito Thalatta, thalatta (Mar, Mar!) clamado pelos Gregos, ao avistarem o mar (propriamente, o Mar Negro), com este avistamento retomando alento para o resto do percurso que faltava perfazer até casa!

Regressado, é expulso de território ateniense pelo seu alinhamento pró-espartano e os seus bens são confiscados. Acolhido em território dominado por Esparta, escreve.

Além de Esparta, aprendeu a admirar os bárbaros Persas. Entre estes, Ciro II, grande rei da Pérsia (559-530), particular. Fundador do império persa sob a soberania aqueménida, filho de uma infanta meda e de um rei persa, uniu as duas casas e reinos, embora alcandorando a Pérsia, antes vassala da Média, ao papel dominante. A este soberano reservou a história o cognome de Grande. E justamente granjeou admiração e estima dos muitos reinos e nações colocados sob o seu domínio. Pôs fim à hegemonia da Babilónia, permitindo aos degredados Judeus naquela cidade o regresso à Judeia e à sua cidade santa, Jerusalém, para a reconstruírem. A imagem de monarca tolerante e esclarecido, que soube tornar inimigos e vencidos em amigos e aliados[2], admitir que as miríades de povos sob regência persa mantivesse os seus cultos religiosos e governos e administrações locais, embora tributários e sob protecção do Grande Rei, está-lhe indelevelmente associada. E não apenas entre os Judeus[3]. Também entre os Gregos.

Sobre ele escreveu Xenofonte a Kyrou paideia, título que significa propriamente Educação de Ciro, obra também conhecida pela transliteração Ciropedia, em oito tomos. É uma obra de difícil classificação. Com efeito, este título aplica-se apenas, com propriedade, a uma parte do primeiro tomo. O seu carácter é mesclado: historiografia, romance histórico, biografia romanceada, relato com propósito moral, filosófico e didáctico, tratado de pedagogia e militar, panegírico de soberano[4]. O próprio autor reclamava para ela a dignidade de história: sobre aquele homem merecedor de admiração, escreve (I 1.6), “tudo quanto veio ao nosso conhecimento e pensamos saber sobre ele, isso tentaremos expor.” Entre as suas fontes, contam-se, principalmente, Heródoto, entre outras. Mas também tradições locais. Diversas vezes Xenofonte se refere ao que ouviu, ao que se contava de Ciro.

Porém, entre os críticos da sua obra tem sido posta em causa a total historicidade da sua obra, que os Antigos conheciam mais bem pelo nome Cyrus (Ciro), apenas. Cícero, numa carta ao irmão Quinto (I 1.23), escreve: Cyrus illa a Xenophonte non ad historiae finem scriptus “a célebre obra Ciro, escrita por Xenofonte, não o foi com propósito historiográfico”. Este testemunho tem uma dupla utilidade: transmite o título pelo qual a obra era geralmente conhecida e faz crítica literária, declarando explicitamente que ela não pretendia ser história. Romance histórico e panegírico? Ainda quanto ao título, o outro, o mais longo, desde Aulo Gélio (Noites áticas 14.3) tornou-se o tradicional, mas era já utilizado pelo irmão de Cícero. Talvez mais bem algo parecido com uma conjugação de crónica etnográfica e do pitoresco da vida na corte com romance histórico.

"Death of Panthea", por Peter Paul Rubens
“Death of Panthea”, por Peter Paul Rubens

Mas também uma obra de filosofia política e de retrato ideal do governante: Aulo Gélio (ibidem) nota que, após a publicação, em separado, dos dois primeiros livros da República por Platão, Xenofonte avançou, em oposição, com a sua Ciropedia. Ambos os autores, lembremos, foram discípulos de Sóacrates e ambos desprezavam o regime democrático. Por conseguinte, não sabemos como classificar, por exemplo, esse celebérrimo episódio para o qual gerações de estudantes de Grego, em que o miúdo Ciro, na companhia da mãe, Mandane, visita a corte do rei da Média, o avô materno Astíages, e, perante o fausto cortesão e o aparato da indumentária e do adorno do rei, exclama: ὦ μήτερ, ὡς καλὀς μοι ὁ πάππος ó mãe, como é bonito o meu avô! Foi muito lida e utilizada na Antiguidade. Cícero observa que Cipião, o Africano, o vencedor do cartaginês Aníbal, far-se-ia sempre acompanhar de uma cópia da obra; o próprio Cícero teria aplicado os seus princípios quando era governador na Cilícia (Cartas à família 9.25.2). Mas é uma obra também que rasga caminhos para o futuro, pelo retrato idealizado do soberano, no qual a Idade Média encontrou motivo para imitação e o Renascimento um cadinho para a teoria da formação dos príncipes. Maquiavel foi influenciado por ela.

Nesta obra acha-se uma história de amor, uma muito conhecida e muito bela história de amor, a de Abradatas e Panteia. Abradatas (seja personagem real ou de ficção) seria rei de Susos (Educ. Ciro 5.1.2), cidade do Elão (região na margem nordoriental do Golfo Pérsico). Era aliado dos Assírios (5.1.3). Aconteceu que, estando Abradatas ausente em missão diplomática por conta da aliança assíria, Ciro conquista o campo assírio, capturando Panteia, princesa assíria e esposa de Abradatas. Embora vestida como as outras mulheres da corte, servas, Ciro reparou no porte, dignidade e nobreza da mulher. E tratou-a com honra, em vez de a reduzir, como era o hábito entre os vencedores, à condição de escrava ou pior, de escrava sexual do próprio ou de um outro alto dignitário. Panteia observa que o rei da Assíria quisera afastá-la do marido; em contrapartida, Ciro tentava reaproximá-los, e isso merecia apreço e a sua fidelidade e do marido. Com efeito, no seu regresso, Abradatas, ao saber do tratamento que Ciro dera à mulher, decide aliar-se ao rei da Pérsia (6.1.45-49). A beleza, singeleza e nobreza da história destes esposos e da conduta do soberano persa merecem que a reproduzamos, se não na totalidade — por ser uma narrativa intercalada com outras ao longo dos livros 5 e 6 da Ciropedia —, pelo menos alguns dos seus momemtos. Fruamos (6.1.47-49):

ὡς δ᾽ εἰδέτην ἀλλήλους ἡ γυνὴ καὶ ὁ Ἀβραδάτας, ἠσπάζοντο ἀλλήλους ὡς εἰκὸς ἐκ δυσελπίστων. ἐκ τούτου δὴ λέγει ἡ Πάνθεια τοῦ Κύρου τὴν ὁσιότητα καὶ τὴν σωφροσύνην καὶ τὴν πρὸς αὑτὴν κατοίκτισιν. ὁ δὲ Ἀβραδάτας ἀκούσας εἶπε· τί ἂν οὖν ἐγὼ ποιῶν, ὦ Πάνθεια, χάριν Κύρῳ ὑπέρ τε σοῦ καὶ ἐμαυτοῦ ἀποδοίην; τί δὲ ἄλλο, ἔφη ἡ Πάνθεια, ἢ πειρώμενος ὅμοιος εἶναι περὶ ἐκεῖνον οἷόσπερ ἐκεῖνος περὶ σέ;

ἐκ τούτου δὴ ἔρχεται πρὸς τὸν Κῦρον ὁ Ἀβραδάτας. καὶ ὡς εἶδεν αὐτόν, λαβόμενος τῆς δεξιᾶς εἶπεν· ἀνθ᾽ ὧν σὺ εὖ πεποίηκας ἡμᾶς, ὦ Κῦρε, οὐκ ἔχω τί μεῖζον εἴπω ἢ ὅτι φίλον σοι ἐμαυτὸν δίδωμι καὶ θεράποντα καὶ σύμμαχον. καὶ ὅσα ἂν ὁρῶ σε σπουδάζοντα, συνεργὸς πειράσομαι γίγνεσθαι ὡς ἂν δύνωμαι κράτιστος. καὶ ὁ Κῦρος εἶπεν· ἐγὼ δὲ δέχομαι. καὶ νῦν μέν σε ἀφίημι, ἔφη, σὺν τῇ γυναικὶ δειπνεῖν· αὖθις δὲ καὶ παρ᾽ ἐμοὶ δεήσει σε σκηνοῦν σὺν τοῖς σοῖς τε καὶ ἐμοῖς φίλοις.

Ao verem-se um ao outro, Abradatas e a mulher abraçaram-se, como é natural, pois contrário era à esperança. Depois disso, Panteia contou-lhe a piedade, o autodomínio e a compaixão com que Ciro a tratara. Abradatas, ao ouvi-lo, perguntou:

— Que hei-de eu fazer, Panteia, em pagamento da dívida de gratidão que tanto tu como eu temos para com Ciro?»

— Que mais pode ser — disse Panteia — senão que procures agir para com ele tal como ele agiu para contigo?

Então, Abradatas foi ao encontro de Ciro. Ao vê-lo, tomou-o pela mão direita e disse-lhe:

— Em contrapartida do bem que nos fizeste, Ciro, não tenho nada melhor para te dizer senão que entrego a minha própria pessoa a ti, enquanto amigo e aliado. E que em todos os empreendimento em que eu te vir empenhado, procurarei ser teu cooperador no melhor que eu puder.

E Ciro respondeu:

— Pois eu aceito! — E acrescentou:

— Por agora dou-te licença para ires jantar com a tua mulher. Mas um dia destes terás de vir jantar comigo à minha tenda, com os teus amigos e os meus.

(Tradução do autor)

Logo de seguida, Abradatas teve a oportunidade de honrar a sua solene promessa, contribuindo com cem quadrigas para o exército de Ciro (6.1.50-52). Mais tarde, é planeada uma campanha contra o Egipto e Abradatas apresenta-se como voluntário para uma das linhas da frente. A Ciro agradou a ideia, mas inquiriu o parecer dos demais comandantes persas. Ora estes entendiam que essa concessão era incompatível com a sua ideia de honra, pelo que Ciro tirou à sorte. E esta designou Abradatas (6.3.35-37)!

(continua)

[1] O ático é, com efeito, o dialecto da Ática e, por consequência, de Atenas. Os dialectos do grego antigo estão ligados originariamente a variedades regionais e a vagas diversas, no tempo e no espaço, de migrações helénicas do Norte para o interior da Península Grega e para outros territórios da Ásia Menor, insulares, de Itália e até às costas do Mar Negro. Todavia, falar de dialectos tornou-se mais uma questão de convenção literária: pelo hábito e convenção, determinados géneros e formas literárias eram escritas num determinado dialecto. A prosa (historiográfica, filosofia, oratória), por exemplo, selecciona o dialecto ático e o iónico (a historiografia de Heródoto), ao qual o ático era aparentado.
[2] Creso, o rico rei da Lídia, foi, segundo Heródoto, um desses. Após combater Ciro, é capturado por este, condenado a morrer queimado vivo mas perdoado, para ser acolhido como seu amigo e conselheiro (1.88).
[3] Cf. os livros bíblicos de 2 Crónicas 36:22 sqq. e Esdras 1. É o Ciro de que fala o livro de Isaías 45, declarado instrumento de Deus para a libertação dos Israelitas do exílio babilónico. As inscrições em cuneiforme acádico do Cilindro de Ciro, de barro, descoberto na Babilónia, aponta Ciro como conquistador da cidade por designação de Marduk, deus da cidade, restaurador da paz para o seu povo e declara que ordenara o regresso de povos expatriados e a restauração de templos e santuários por toda a Mesopotâmia.
[4] Cf. a introdução Xénophon, Cyropédie vol. I, introdução, texto, tradução e notas de Marcel Bizos, Paris, Les Belles Lettres, 1972, p. V.

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