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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Sobre Auschwitz – uma leitura necessária

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Não é um livro agradável, mas é um livro necessário. O livro Auschwitz – um dia de cada vez (Lisboa, A Esfera dos Livros, 332 pp.) de Esther Mucznik, dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa e estudiosa de questões judaicas, é de leitura obrigatória, no verdadeiro sentido da palavra[1]. Reconheço que, de vez em quando, regresso à leitura de obras sobre o Holocausto nazi, não porque sinta necessário reavivar-me a memória, mas porque tento, recorrentemente, perceber melhor o problema do mal, dos limites do mal, do que pode o homem fazer ao seu semelhante, praticando as formas mais cruéis de eliminar aquele nos olha nos olhos e onde no seu olhar nos devolve a imagem de nós próprios. Como é possível, humanamente possível, responder como o fez Wilfred von Oven, ajudante-de-campo de Goebbels, que ao convite para resumir numa só palavra a sua experiência do Terceiro Reich, respondeu que essa palavra seria… Paraíso![2] Ora, como se pode con-viver, viver ao lado das experiências mais horríveis exercidas sobre seres humanos indefesos? E, mais do que viver, viver no melhor dos mundos possíveis? É que o regime nazi levou a cabo um processo de massas no sentido da mais cruel desumanização que não se podia ignorar, apesar dos esforços da propaganda de apresentar campos modelo, como o gueto de Theresienstadt (pp. 153-172).

O choque logo à chegada do campo era, para os prisioneiros, muitos que até desconheciam o destino para o qual estavam a ser encaminhados, absoluto: “o aspeto sinistro das cercas de arame farpado, a visão diabólica das chamas a sair dos crematórios, o cheiro nauseabundo de carne e cabelos queimados, tudo isto acompanhado pela brutalidade com que eram recebidos, o afastamento violento e imediato dos familiares, o desconhecimento do que os aguardava, transformavam a chegada dos prisioneiros num pesadelo sem nome” (p. 87).

Os campos acolheram prisioneiros oriundos de muitos pontos da Europa, nem todos tratados da mesma maneira, criando-se uma espécie de hierarquia racial. Os polacos, os checos e os eslavos antecediam imediatamente os mais maltratados: os ciganos e os judeus (p. 93).

Ora, à medida que o conflito prosseguia pela Europa, era inegável o aproveitamento da mão-de-obra dos prisioneiros, contribuindo para a economia alemã implicada no esforço de guerra. Aliás,  foram numerosas as empresas alemãs a aproveitarem-se dessa mão-de-obra, empresas respeitáveis com que, hoje, nos cruzamos diariamente. Esse aproveitamento de natureza económica pode introduzir um laivo de racionalidade no holocausto. Como as experiências médicas. Mas não conseguem superar o sentimento de perplexidade perante a sua desumanidade monstruosa.

Por outro lado, a terrível experiência de Auschwitz prolongou-se para além do campo. Continua naqueles que sobreviveram. Muitos deles continuarão a viver com uma ferida interior que os corrói, com uma memória angustiante  ou um sentimento de culpa por ter sobrevivido. Como confessa uma das muitas sobreviventes e cujo testemunho vem reproduzido no livro: «Nunca se sai verdadeiramente do crematório» (p. 261).

Talvez esteja aqui uma das razões para não esquecermos Auschwitz e, pelo contrário, nos entregarmos à leitura de obras que vão retratando e dando a conhecer o que foi o terror nazi. É que, tal como a prisioneira, os crematórios não foram deixados para trás, como um artefacto duma arqueologia mais recente. A autora repete várias vezes: não basta a memória, é necessário e essencial o conhecimento da realidade nazi.

Até porque, sublinha Esther Mucznik, por vezes esquecemos a principal lição de Auschwitz: “A de como podem ser destrutivas as guerras nas nossas sociedades altamente evoluídas do ponto de vista científico, tecnológico e industrial”. E os maiores massacres não aconteceram nos campos de batalha, “mas nos bastidores das administrações públicas e privadas” (p. 296). O nosso tempo é ainda um tempo onde o mal se vem manifestando sob formas mais dissimuladas: o conformismo, a indiferença, a cumplicidade perante a violência, o desenraizamento dos homens que regressa, os muros.

Como recorda Hannah Arendt, “as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários, sob a forma de fortes tentações, que aparecerão onde pareça impossível aliviar a miséria política, social ou económica”[3].

Neste sentido, o significado político do totalitarismo que construiu Auschwitz, não morreu com Auschwitz. As fortes tentações totalitárias ainda inspiram a política dos nossos dias. Todos sabemos isso. E já achámos que seria impossível apoderarem-se do discurso político oficial. Só que a realidade, no seu dramatismo, está sempre à frente do que possamos pensar àcerca dela.

[1] Esther Muznik é também autora do livro Portugueses no Holocausto, editado entre nós, também, pela Esfera dos Livros.
[2] Cf. Lawrence Rees, Auschwitz – os nazis e a «solução final», Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, 416 pp.
[3] Hannah Arendt cit. in Cristina Sanchéz, Arendt -a política em tempos obscuros, Lisboa, Cofina Media, 2015, p. 63.

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