Passos Coelho e Paulo Portas, acompanhados por todas as outras cabeças falantes dos respectivos partidos, têm-se multiplicado em afirmações desde que se aperceberam que não iriam continuar no poder, tentando pôr em causa a legitimidade de um governo do Partido Socialista com o apoio de outros partidos com assento parlamentar. As expressões, com uma ou outra pequena diferença, vão sempre no mesmo sentido: em Portugal foi sempre escolhido o partido mais votado para formar governo; a coligação PSD/CDS foi a mais votada e deve governar; Passos Coelho foi o escolhido pelos portugueses para formar governo; um governo do PS com o apoio do BE, PCP e PEV é um governo dos que perderam, e, como tal, ilegítimo.
Esperava-se que algum dos nossos inúmeros comentadores políticos fizesse alguma pedagogia e dissesse que não é bem assim. Mas parece que este discurso vai sendo aceite e assumindo foros de cidadania. Essas afirmações valem o que valem, demonstrando claramente o apego ao poder de PSD e CDS, e nem sequer são muito rigorosas. Vale a pena tentar analisá-las.
Em primeiro lugar, não é correcto afirmar-se que no Portugal democrático foi sempre o partido mais votado que formou governo. Ramalho Eanes, enquanto Presidente, nomeou três governos, conhecidos como de “iniciativa presidencial”, que não tiveram como referência os resultados das eleições legislativas. E se no caso de Nobre da Costa e Maria de Lourdes Pintassilgo se tratavam de pessoas sem filiação partidária, um desses governos de iniciativa presidencial, o segundo, foi chefiado por Carlos Alberto da Mota Pinto, então membro do PPD/PSD, e que não tinha ganho as últimas eleições legislativas, sendo o segundo partido mais votado.
Depois, o facto de a coligação PSD /CDS ter sido a mais votada e, como tal, dever governar, é uma afirmação que carece de ser demonstrada.
Dificilmente se encontrará um texto sobre democracia ou sobre ciência política que afirme que em democracia governa o partido mais votado. Não o dizem os autores e não o diz a nossa Constituição. Em democracia governa quem tem condições para o fazer e, no caso de um regime constitucional como o nosso, em que a legitimidade do governo assenta no Parlamento, governa quem tem o apoio do Parlamento, não sendo necessariamente o partido mais votado. O apoio ou a vontade do Presidente da República não são suficientes para manter um governo. Aliás, mesmo na versão original da Constituição, em que o sistema tinha um pendor mais presidencialista do que actualmente, não bastava a vontade do Presidente, como se viu com o Governo de Nobre de Costa, “chumbado” na Assembleia e que foi substituído por Mota Pinto.
E não só em Portugal isto acontece: actualmente, a Dinamarca, a Holanda e o Luxemburgo, três democracias do espaço europeu, têm governos em que não participa o partido mais votado. Obviamente que Passos Coelho e Paulo Portas, sempre que participavam em qualquer reunião em que houvesse a presença de um membro desses governos faziam questão de deixar claro que eles não deviam estar ali, pois não tinham ganho as eleições. O seu grande espírito de democratas não lhes permitiria proceder de outra forma.
Cabe dizer que no sistema político português não há eleições para Primeiro-Ministro ou para o Governo, mas para o Parlamento. Assim, Passos Coelho, como Portas ou António Costa, apenas foram eleitos deputados e nada mais que isso. Há a tradição de o líder dos principais partidos ser o primeiro candidato por Lisboa, e ser ele que o partido indica ao Presidente da República para indigitar como Primeiro-Ministro. Mas nada na Constituição obriga a que seja assim. Aliás, se as eleições fossem para eleger o Primeiro-Ministro, Pedro Santana Lopes nunca teria sido Primeiro-Ministro.
Poderemos também dizer que o actual governo, formado pelo PS com o apoio de do BE, PCP e Verdes, não é um governo de perdedores, e nada existe que afecte a sua legitimidade.
Em Portugal existe uma visão muito redutora e simplista de um processo eleitoral quando se afirma “nas eleições ganha que tem mais votos”. Aparentemente é assim, mas na realidade pode não ser. E só pelo facto de os Estados Unidos serem um país pouco democrático é que Al Gore, há alguns anos, terá tido mais votos que o candidato George W. Bush, mas este é que foi eleito Presidente.
Dizer quem ganhou ou perdeu as eleições é muito mais complexo que isso, e tem muito a ver com os objectivos que cada partido traça para as eleições. Um exemplo extraído do futebol pode ajudar a compreender melhor esta posição.
Quando começa o campeonato apenas uma minoria de clubes pode almejar a ser campeão. Cada clube traça os seus objectivos, com mais ou menos realismo, mas sabendo qual é, verdadeiramente, o “seu” campeonato.
Alguns clubes sabem que apenas podem esperar não ser despromovidos, e fazer uma ou outra surpresa. Nas eleições, a surpresa veio certamente do PAN, que poderia ter a esperança secreta de estar no Parlamento, mas sabia que isso ia ser muito improvável.
Depois surgem os clubes que têm como objectivo melhorar a pontuação do ano anterior e, se possível, aparecer a discutir com os grandes, de vez em quando. Estão neste patamar a CDU e o BE. Ambos teriam objectivos muito idênticos: sabendo que não iriam ganhar, queriam ver se faziam melhor do que na última época, em 2011. E foram traçando os seus objectivos ao longo da campanha eleitoral: impedir a formação de um governo PSD/CDS, ajudando a tirar a maioria à coligação; crescer em número de votos; crescer em número de deputados.
Fez melhor resultado o BE, pois cresceu mais e tornou-se a terceira força política no Parlamento. A CDU aumentou ligeiramente o número de votos, e teve mais um deputado. A coligação não conseguiu a maioria. Tendo em conta os objectivos definidos, que foram atingidos, o BE e a CDU ganharam o “seu”campeonato.
Para o fim ficam os clubes que, pela tradição ou dimensão, lutam claramente pelo título. Era o caso de PSD/CDS, e do PS. Tem que se dizer que, para qualquer um deles, uma vitória à tangente não bastava: tinham que “esmagar” o adversário.
Tendo traçado esses objectivos os seus resultados foram diferentes, num primeiro momento: o PS não foi o partido mais votado, e nesse aspecto é um perdedor. A coligação teve mais votos e deputados e, nesse campo, ganhou as eleições, mas perdeu a maioria absoluta. Foi uma vitória à tangente.
Vale aqui analisar o comportamento de PSD e CDS em separado.
Paulo Portas teve a habilidade de perceber que não podia ir sozinho a jogo, pois corria o risco de uma goleada: o “partido do táxi” ainda está muito presente, e Portas teve receio de se transformar no “partido do Smart”. Assim fez uma equipa conjunta e lá se salvou, não sem perder o lugar de terceira força, o que significa que perdeu deputados e posições: foi um perdedor, mas podia ter sido pior.
O PSD, em relação a 2011, perdeu votos e deputados. Sendo, ainda assim, o mais votado e tendo mais deputados, ainda que poucos, venceu mas não convenceu.
Mas o problema é que, como por vezes acontece no futebol, terminou o jogo mas não o campeonato: era preciso um “play off”, para ver quem ganhava verdadeiramente, ou seja, quem tinha condições para governar.
Como também acontece por vezes no futebol, a coligação PSD/CDS tinha o apoio do árbitro, leia-se Presidente da República que, de forma evidente, queria interferir no resultado. Todavia, embora possa assinalar umas faltas inexistentes, o Presidente da República não podia sobrepor-se a outra entidade mais importante: o Parlamento.
Em Portugal, o Presidente da República funciona como árbitro em relação ao Governo e, como alguns árbitros, tem as suas simpatias clubísticas. Simplesmente, a sua interferência no resultado é, na verdade, diminuta: cabe-lhe indigitar o Primeiro-Ministro e dar posse ao Governo. Mas o Governo só existe mesmo se o Parlamento o permitir, ou seja, o Governo precisa que o seu programa não seja rejeitado no Parlamento. Se isso acontecer, o Governo não governa, sai de jogo e tem que ser substituído.
E aqui, no “play off” final, António Costa mostrou mais “pulmão”, mais resistência e mais capacidade concretizadora: enquanto que a dupla “Passos/Portas começou bem mas não conseguiu ultrapassar o último obstáculo, ou seja, o Parlamento, Costa conseguiu um reforço defensivo que lhe permitiu, ainda que contra a vontade do Presidente da República, formar um Governo que tem apoio maioritário no Parlamento.
Num sistema semi-parlamentar é no Parlamento que se decide quem governa, e aqui a coligação de esquerda foi a vencedora.
Ri melhor quem ri por último.
[…] Source: Cabeças falantes e a Legitimidade do Governo – Jornal Tornado […]