Boaventura de Sousa Santos afirma que a democracia brasileira está em perigo, e fala diretamente aos brasileiros que fazem parte da esquerda e da centro-esquerda alertando para a urgência de preserva-la.Dirijo-me aos democratas brasileiros porque só eles podem ter interesse no teor dessa mensagem. Vivemos um tempo de emoções fortes. Para alguém, como eu e tantos outros que nesses anos acompanharam as lutas e iniciativas de todos os brasileiros no sentido de consolidar e aprofundar a democracia brasileira, contribuir para uma sociedade mais justa e menos racista e preconceituosa, esse não é um momento feliz. Para alguém, como eu e tantos outros que nas últimas décadas se dedicaram a estudar o sistema judicial brasileiro e a promover uma cultura de independência democrática e de responsabilidade social entre os magistrados e os jovens estudantes de direito, esse é um momento de grande frustração.
Para alguém, como eu e tantos outros que estiveram atentos aos objetivos das forças reacionárias brasileiras e do imperialismo norte-americano no sentido de voltarem a controlar os destinos do país, como sempre fizeram mas pensaram que dessa vez as forças populares e democratas tinham vencido, esse é um momento de desalento. As emoções fortes são preciosas se forem parte da razão quente que nos faz continuar, se a indignação, longe de nos fazer desistir, reforçar o inconformismo e fortalecer a resistência, se a raiva ante sonhos injustamente destroçados não liquidar a vontade de sonhar. É com esses pressupostos que me dirijo a vocês. Uma palavra de análise e outra de princípios de ação.
Por quê estamos aqui? Esse não é o lugar nem o momento para analisar os últimos quinze anos da história do Brasil. Concentro-me nos últimos tempos. A grande maioria dos brasileiros saudou o surgimento da operação Lava Jato como um instrumento que contribuiria para fortalecer a democracia brasileira pela via da luta contra a corrupção. No entanto, em face das chocantes irregularidades processuais e da grosseira seletividade das investigações, cedo nos demos conta de que não se tratava disso, mas antes de liquidar, pela via judicial, não só as conquistas sociais da última década como também as forças políticas que as tornaram possíveis. Acontece que as classes dominantes perdem frequentemente em lucidez o que ganham em arrogância.
A destituição de Dilma Rousseff, a presidenta que foi talvez o presidente mais honesto da história do Brasil, foi o sinal de que a arrogância era o outro lado da quase desesperada impaciência em liquidar o passado recente. Foi tudo tão grotescamente óbvio que os brasileiros conseguiram afastar momentaneamente a cortina de fumaça do monopólio midiático. O sinal mais visível da sua reação foi o modo como se entusiasmaram com a campanha pelo direito do ex-presidente Lula da Silva a ser candidato às eleições de 2018, um entusiasmo que contagiou mesmo aqueles que não votariam nele, caso ele fosse candidato. Tratou-se de um exercício de democracia de alta intensidade.
Temos, no entanto, de convir que, da perspectiva das forças conservadoras e do imperialismo norte-americano, a vitória desse movimento popular era algo inaceitável. Dada a popularidade de Lula da Silva, era bem possível que ganhasse as eleições, caso fosse candidato. Isso significaria que o processo de contra-reforma que tinha sido iniciado com a destituição de Dilma Rousseff e a condução política da Lava Jato tinha sido em vão. Todo o investimento político, financeiro e midiático teria sido desperdiçado, todos os ganhos econômicos já obtidos postos em perigo ou perdidos. Do ponto de vista destas forças, Lula da Silva não poderia voltar ao poder. Se o Judiciário não tivesse cumprido a sua função, talvez Lula da Silva viesse a ser vítima de um acidente de avião, ou algo semelhante. Mas o investimento imperial no Judiciário (muito maior do que se pode imaginar) permitiu que não se chegasse a tais extremos.
O que fazer? A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda podem salvá-la. Para muitos, talvez seja triste constatar que nesse momento não é possível confiar nas forças de direita para colaborar na defesa da democracia. Mas essa é a verdade. Não excluo que haja grupos de direita que apenas se revejam nos modos democráticos de lutar pelo poder. Apesar disso, não estão dispostos a colaborar genuinamente com as forças de esquerda. Por quê? Porque se vêem como parte de uma elite que sempre governou o país e que ainda não se curou da ferida caótica que os governos lulistas lhe infligiram, uma ferida profunda que provém do fato de que um grupo social estranho à elite ousou governar o país, e ainda por cima cometeu o grave erro (e foi realmente grave) de querer governar como se fosse elite.
Nesse momento, a sobrevivência da democracia brasileira está nas mãos da esquerda e da centro-esquerda. Elas só poderão ter êxito nessa exigente tarefa se se unirem. São diversas as forças de esquerda e a diversidade deve ser saudada. Acresce que uma delas, o PT, sofre do desgaste do pós-governar, um desgaste que foi omitido durante a campanha pelo direito de Lula a ser candidato. Mas a medida que entrarmos no período pós-Lula (por mais que custe a muitos), o desgaste cobrará o seu preço e a melhor forma de estabelece-lo democraticamente é através de um regresso às bases e de uma discussão interna que leve a mudanças de fundo. Continuar a evitar essa discussão sob o pretexto do apoio unitário a um outro candidato é um convite ao desastre.
O patrimônio simbólico e histórico de Lula saiu intacto das mãos dos justiceiros de Curitiba e companhia. É um patrimônio a ser preservado para o futuro. Seria um erro desperdiça-lo, instrumentalizando-o para indicar novos candidatos. Uma coisa é o candidato Lula, outra, muito diferente, são os candidatos de Lula. Lula equivocou-se muitas vezes, e as nomeações para o Supremo Tribunal Federal estão aí para provar.
A unidade das forças de esquerda deve ser pragmática, mas feita com princípios e compromissos detalhados. Pragmática, porque o que está em jogo é algo básico: a sobrevivência da democracia. Mas com princípios e compromissos, pois o tempo dos cheques em branco fez muito mal ao país em todos esses anos. Sei que, para algumas forças, a política de classe deve ser privilegiada, enquanto para outras, as políticas de inclusão devem ser mais amplas e diversas. A verdade é que a sociedade brasileira é uma sociedade capitalista, racista e sexista. E é extremamente desigual e violenta. Entre 2012 e 2016 foram assassinadas mais pessoas no Brasil do que na Síria (279.000/256.000), apesar desse último país estar em guerra e o Brasil estar em “paz”. A esquerda que pensar que só existe política de classe está equivocada, e a que pensar que não há política de classe está desarmada.
Texto original em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado