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Quarta-feira, Novembro 27, 2024

Os trabalhos do super-Mário

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

No avião para Lisboa, na fila que ficava à frente à esquerda, o passageiro lia interessadamente o jornal de língua flamenga que titulava a toda a largura: ‘Super-Mario’, com uma enorme fotografia do nosso Ministro das Finanças.

  1. Golpe de Estado falhado

No avião para Lisboa, na fila que ficava à frente à esquerda, o passageiro lia interessadamente o jornal de língua flamenga que titulava a toda a largura: ‘Super-Mario’, com uma enorme fotografia do nosso Ministro das Finanças. Estávamos a meio de Janeiro e, no país do dito ‘super-Mário, expressão que estranhamente ainda não encontrei na imprensa portuguesa, o dito cujo era tratado como escroque ou gatuno, repetindo-se as histórias baseadas no facto de ele e o seu filho terem visto um jogo de futebol no camarote de um clube, notícias que se foram avolumando e entraram num frenesim de histeria que se foi acentuando ao longo do mês.

De acordo com o Expresso, no auge da crise, Mário Centeno terá mesmo afirmado que se demitiria caso fosse constituído em arguido, obrigando o Primeiro-Ministro a vir a público renegar a regra que tantas vezes tinha anunciado e que, fosse ou não fosse arguido, não aceitaria a demissão do Ministro das Finanças.

Já antes, Mário Centeno tinha vindo a público explicar que via jogos de futebol do seu clube há 40 anos e não entendia por que razão o tinha de deixar de fazer, explicação que não parece ter convencido o Ministério Público, que realizou com estrondo uma busca ao Ministério e fez saber que tinha lançado uma investigação ao Ministro por causa da dita presença no jogo de futebol, a que estaria ligado um processo de concessão de uma isenção fiscal a um familiar de um dirigente do clube de futebol em causa.

Depois do Ministério Público, tivemos o PPE – maior grupo político europeu – que quis começar uma investigação e anunciou mesmo que só se o processo fosse arquivado deixaria de o fazer.

Talvez por razões que a razão desconhece, talvez por a história ser demasiado absurda, ou talvez porque o Ministério Público se tenha dado conta das consequências catastróficas para o país do autêntico golpe de Estado em desenvolvimento, e de forma absolutamente fora do comum, veio este, alguns dias depois, comunicar o arquivamento do processo, confessando mesmo que o tinha iniciado na sequência da campanha de imprensa feita contra o Ministro das Finanças.

Se todos nós entendemos que qualquer pessoa normal dificilmente pode tolerar ser tratado desta maneira apenas porque é um Ministro que tem cumprido de forma exemplar o serviço público para que foi designado, o problema é que, na verdade, ele tem de ser ‘Super-Mário’ também para aturar isto e, como vimos, ele esteve quase a bater com a porta, obrigando o Primeiro-Ministro a intervir.

  1. A trajectória da geringonça

O Ministro das Finanças resistiu até agora às gargalhadas com que os líderes da oposição o receberam no Parlamento, ao enredo montado pelo senhor Presidente da República com mensagens electrónicas ilegalmente obtidos respeitantes a negociações salariais com banqueiros, e a atropelos vindos dentro de portas, alguns deles públicos. Fora de portas, conseguiu ficar no lugar o tempo suficiente para ver clamorosamente desmentidos os vaticínios com que a Comissão Europeia e o FMI tinham previsto que as suas medidas trariam o caos ao país.

Estas instituições internacionais, contrariamente aos seus opositores nacionais, tiveram até agora o bom senso de reconhecer que não tinham tido razão, catapultando-o para o principal lugar político nas finanças europeias e passando mesmo a reverenciá-lo.

Afirma a oposição que o sucesso de Mário Centeno se deve essencialmente à sorte de ter estado no momento certo no lugar certo. Pessoalmente, partilho em certa medida dessa visão, mas reconheço-lhe, para além da sua capacidade intelectual e extraordinária modéstia, uma assombrosa capacidade de diálogo que conseguiu tornar possível o que parecia impossível para muitos, eu inclusivamente.

Como todos percebemos, a solidez do governo repousa quase inteiramente no prestígio angariado quer no plano interno quer no plano externo pelo ‘Super-Mário’, e esta fórmula governativa que poucos pensaram poder durar uma legislatura ameaça agora poder mesmo prolongar-se para além dela, o que deixa inquietos não só a oposição política (o que é normal e salutar) mas também, menos compreensivelmente, o senhor Presidente da República e o Ministério Público.

  1. Um programa para o país

A principal consequência desse facto é que Mário Centeno pode agora começar a pensar não apenas como navegar à vista, evitar as armadilhas e conseguir gerar consensos mas também em como imprimir um rumo estratégico ao país, e isso implica necessariamente abandonar as amarras dos raciocínios meramente macroeconómicos em que ele venceu e convenceu.

O investimento, como o nosso passado abundantemente demonstra, não consegue só por si gerar crescimento, e pode mesmo amarrar-nos a dívidas incomportáveis, especialmente se forem feitos por ‘parcerias público-privadas como as que tivemos nos últimos trinta anos, com uma oligarquia político-financeira que controla grandes gabinetes de advogados, finança e grandes companhias a capturar o Estado.

Para além das pequenas operações cirúrgicas – como a do saneamento de Ricardo Salgado – rigorosamente nada foi reformado, e as mesmas causas produzirão necessariamente os mesmos efeitos.

Creio, para além disso, que o essencial no funcionamento do Estado é a sua eficácia burocrático-administrativa. Se não fiquei espantado ao ver algures na imprensa que o nosso Serviço Nacional de Saúde foi considerado como melhor que o seu congénere britânico em que se inspirou, a ideia que tenho é que isso só assim é porque o SNS britânico funciona pessimamente, pior do que a generalidade do que eu conheço na Europa.

Em contrapartida, serviços como os das finanças, segurança social ou de registo de propriedade – com os quais tenho de lidar frequentemente – funcionam mal; a electricidade e os combustíveis são dos mais caros da Europa e as portagens – tendo conta o nível nacional de preços – são caríssimas.

Temos para além disso o óbvio problema da justiça, problema que o senhor Presidente da República nos prometeu e anunciou um pacto corporativo fantasma, mas creio que reformar a justiça é encargo pesado demais mesmo para um super-Mário, e que porventura é mesmo necessária a intervenção divina…

Fizemos progressos seguros em matéria educativa – e aqui o anterior Primeiro-ministro José Sócrates tem razões para se mostrar satisfeito – mas não podemos ficar parados.

Enfim, estou convencido que a pior das soluções é querer arrancar com grandes planos de investimento sem nada mudar na eficácia da máquina pública e na captura que dela fizeram interesses privados, e é esse o maior erro que vejo perfilar no horizonte.

A dívida pública do país continua a pesar e a bolha especulativa imobiliária que as autoridades financeiras irresponsavelmente deixaram outra vez formar-se resulta em receitas fiscais no curto prazo, mas ameaça a estabilidade económica e financeira. O ‘super-Mário’ vai ter de urgentemente preocupar-se com isso.

Temos para além disso, quem tenha lógicas suicidas para a economia portuguesa no interior da geringonça, e que é necessário que quem tenha bom senso para as travar. É inconcebível que um país como Portugal, com uma percentagem altíssima de prédios abandonados (entre outras coisas pelo mau funcionamento do registo da propriedade e da fiscalidade) o Bloco de Esquerda acompanhado pela liderança do grupo parlamentar do PS pretenda tratar a chicote os portugueses que promovem alojamento local.

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