Escrevo este artigo pelo caminho inverso do que o título sugere. Vamos primeiramente ao Sudeste Asiático, visitar o Museu dos Vestígios da Guerra, em Ho Chi Minh City, no Vietnã. Depois entro em um breve debate sobre o jornalismo praticado nos Estados Unidos em função da publicação do que ficou conhecido como os “Pentagon Papers” (ou os “Papéis do Pentágono”). Por fim, procuro opinar sobre como o movimento contra a Guerra e pela Paz contribuiu para a retirada americana do Vietnã e nesse contexto qual o papel do jornal americano Washington Post, questões que podemos ver retratadas no filme dirigido por Steven Spielberg, que está em cartaz atualmente no Brasil, “The Post”.
Foi durante uma visita que fiz ao Vietnã, em 2008, na antiga cidade de Saigon, hoje denominada Ho Chi Minh City, compondo uma delegação do PCdoB junto com os companheiros Renato Rabelo, Carlos Diógenes Patinhas e Andreia Diniz – quando estivemos conhecendo o Museu da Guerra. Este museu, na verdade, já mudou algumas vezes de nome e hoje se chama “Museu dos Vestígios da Guerra do Vietnã” (War Remnants Museum, ou ao pé da letra Museu dos Fragmentos da Guerra).
Durante a visita ao Museu, que choca qualquer pessoa pela barbaridade que o império americano e sua máquina de guerra perpetrou contra o povo vietnamita – e também contra o povo laosiano e o cambojano – nos deparamos com uma cena insólita: um dos objetos expostos com destaque no Museu era um livro: “In Retrospect” (que se poderia traduzir como “Analisando retrospectivamente”), escrito pelo ex-Secretário de Defesa dos EUA, Robert S. McNamara, A “Tragédia e as Lições do Vietnã” é o subtítulo da obra.
Neste livro, McNamara pretende fazer uma espécie de autocrítica da intervenção norte-americana na Indochina, ação da qual ele foi um dos protagonistas. Ele conclui entre outras questões: –“Nós subestimamos totalmente a dimensão nacionalista do movimento desencadeado por Ho Chi Minh.
Nós o encaramos primeiro como um Comunista e apenas, secundariamente, como um Vietnamita Nacionalista” (…) Depois, em resposta a uma pergunta do jornalista Jonathan Alter da revista Newsweek, também publicada no livro como apêndice, McNamara diz o seguinte: “Colocando de maneira simples o problema: não se pode julgar de forma errada o conflito. Não subestime o papel do nacionalismo. Muitos conflitos no futuro estarão relacionados ao nacionalismo. Não superestime o que forças militares externas possam conquistar—elas não podem reconstruir Estados “falidos”. O fato é que mais de 3 milhões de vietnamitas foram mortos, enquanto 58 mil soldados americanos também perderam a vida. Em 1963 havia 16.300 assessores militares no Vietnã. Em janeiro de 1973, dez anos depois, as tropas dos EUA contavam com 543.400 soldados. Pelas revelações de um dos responsáveis diretos pelo esforço de guerra das tropas americanas – creio eu – o livro tem sua relevância na exposição do Museu.
Estas lições, no entanto, não foram levadas em conta nas subsequentes intervenções em que o Exército estadunidense esteve envolvido mais recentemente, como na invasão do Afeganistão (a guerra já se prolonga por 16 anos), a invasão do Iraque (onde aquelas mesmas mentiras utilizadas no Vietnã foram recorrentes), a invasão da Líbia, a intervenção sub-reptícia na Ucrânia, e a permanente intervenção na Síria, para não falar dos bloqueios criminosos de Cuba e da Coréia do Norte, além do apoio absoluto ao massacre de Israel aos palestinos no Oriente Médio.
Sete anos antes de terminar a guerra McNamara se demitiu do cargo e foi entronizado como presidente do Banco Mundial. Antes de se demitir, entretanto, ele constituiu uma comissão de pesquisa (com 36 oficiais militares e acadêmicos) responsáveis pela missão de retratar a trajetória dos Estados Unidos, no envolvimento intervencionista no Vietnã desde o governo do presidente Harry Truman — idealizador da Doutrina Truman — que desencadeou o que chamamos hoje de Guerra Fria, para “conter” o avanço do comunismo no mundo.
Seguiram-se mais 4 presidentes: Dwight Eisenhower (1053-1961), John F. Kennedy (1961-1963), Lyndon B. Johnson (1963-1969) durante o Governo do qual McNamara foi convidado para Secretário de Defesa, e Richard Nixon (1969-1974) que na sequência foi denunciado no processo do Watergate e acabou renunciando ao cargo ante o impeachment inevitável. A guerra só iria terminar em 1975, durante o governo de Gerald Ford, simbolizada pela retirada desarvorada através de helicópteros do pessoal que trabalhava na embaixada americana em Saigon, acompanhada de vietnamitas leais ao governo fantoche do Vietnã do Sul.
Secretário de Defesa Robert McNamara, que organizou uma comissão para elaborar relatório sobre os desmandos de 4 Presidentes dos Estados Unidos, e que ficou conhecido como os “Papéis do Pentágono”
Aquela pesquisa demandada por McNamara, foi feita por uma empresa contratada pelo Pentágono chamada Rand Corporation, que montou uma força-tarefa da qual o analista militar Daniel Ellsberg fazia parte. Ele inclusive foi ao cenário da guerra para acompanhar de perto os combates e para documentar a atividade militar dos EUA.
Logo que voltou a Washington Ellsberg encontrou-se com McNamara que já estava convencido de que a guerra não podia ser vencida pela principal potência militar do planeta. Mesmo assim, McNamara dá declarações à imprensa se dizendo acreditar no esforço guerreiro das tropas estadunidenses. Ellsberg se desencanta sobre a justeza do envolvimento estadunidense no Vietnã (fato reproduzido no filme em cartaz) e passa a fotocopiar os documentos que estavam num arquivo da empresa na qual havia sido funcionário. McNamara já havia deixado o cargo de Secretário de Defesa em fevereiro de 1968 quando seu sucessor, Clark M Clifford, recebeu o trabalho de pesquisa pronto em 15 de janeiro de 1969. Oficialmente este material de pesquisa foi denominado “História dos processos de tomada de decisão dos EUA na Política Vietnamita” (1945-1967).
Com os documentos em mãos, Ellsberg resolveu repassar as mais de 7 mil páginas do relatório a jornalistas da então grande imprensa nacional americana, que eram basicamente o New York Times e o Washington Post. O movimento social nos Estados Unidos já se levantava nas Universidades e nas ruas em manifestações contra a guerra e exigindo a paz.
Estes tipos de manifestação também ocorreram em vários países do mundo, especialmente na Europa e na América Latina. No Brasil, o movimento estudantil que promovia mobilizações nas ruas contra a Ditadura Militar instalada em 1964, também realizou protestos em capitais de estados como em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro contra a Guerra do Vietnã. Participei em uma sala de cinema cult de São Paulo, na Praça Roosevelt, no Cine Bijou, de várias sessões que rodavam celuloides fornecidos pela Frente de Libertação Nacional vietnamita, mostrando os horrores da guerra.
Com a divulgação daqueles documentos que denunciavam 30 anos de ação governamental dos presidentes americanos – que sistematicamente mentiram e desinformaram o povo norte-americano sobre a real impossibilidade de vitória no conflito vietnamita – o clamor popular pelo fim da guerra cresceu. Na verdade, o front interno nos EUA contra a guerra contribuiu decisivamente com o esforço heroico do Exército e do povo daquele pequeno país do Sudeste Asiático que ousou se levantar contra o colonialismo e o imperialismo.
Os dois grandes jornais americanos travaram uma luta pela divulgação dos documentos sendo que o New York Times teve a primazia de iniciar a divulgação. Mas o Governo entrou com pedidos na Suprema Corte para que os artigos que tratavam do assunto fossem sustados e impedidos de ser publicados. Os advogados destes órgãos de imprensa entraram com recursos baseados na Primeira Emenda da Constituição dos EUA que assegura a liberdade de imprensa, e terminaram por vencer a pendência jurídica por 6 votos a 3. Esta emenda reza: “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”.
No caso do Washington Post, mais precisamente, houve uma disputa interna na direção do jornal envolvendo a dona da Companhia – Katharine Graham – e seu principal jornalista, Ben Bradlee, contra a opinião de outros diretores e seus advogados que desaconselhavam a publicação dos documentos, cunhados de secretos, tendo em vista a abertura de capital do jornal na Bolsa de Valores de Nova Iorque, que permitiria maior liquidez para as operações da Companhia. Katharine, interpretada em grande estilo em “The Post” por Meryl Streep, decide ao cabo de pressões e contrapressões, publicar os documentos, o que deu prestígio ao Washington Post. Um tempo depois a mesma Katharine nomeou os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para investigarem a denúncia de que o Governo Nixon estava envolvido na gravação ilegal nos escritórios do Comitê Nacional do Partido Democrata que ficou conhecido como o escândalo de “Watergate”.
Este fato foi o tema de um filme, “Todos os Homens do Presidente”, dirigido por Alan J. Pakula, de 1976, ambientado durante o Governo Richard Nixon. A história relata a invasão do Edifício Watergate, sede da campanha democrata, por 5 agentes da CIA e do FBI, e o esforço investigativo dos dois repórteres do Post para desvendar a trama. Acontece que nem por um momento o roteiro revela o papel de Katharine Graham na direção do processo jornalístico retratado. Assim, em certo sentido, o atual filme de Spielberg, resgata o papel desta que foi considerada uma das mulheres mais poderosas dos Estados Unidos em sua época.
Ou seja, desta maneira o jornalismo baseado em fatos concretos e não em denúncias vazias deu a sua contribuição para a luta pela Paz. A Guerra do Vietnã finalmente teve um desfecho em 1975 depois da grande ofensiva militar do Tet no Vietnã do Sul, quando os guerrilheiros vietnamitas expulsaram os invasores estadunidenses e o Exército de Libertação Nacional unificou o país.
Por Pedro Oliveira | Texto original em português do Brasil
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