O livro Racismos – das Cruzadas ao Século XX de Francisco Bethencourt[1] é espantoso a vários níveis: pela erudição e profundidade do autor, pelo rigor e abrangência das referências e temas que mobiliza para um debate que só pode ser mais bem fundado a partir daqui. Mas é também um livro essencial pela qualidade dessa informação que traz para uma temática que, infelizmente, regressa sob novas roupagens para a actualidade política. Aí percebemos que mitos e preconceitos, intolerância tóxica e memórias mal trabalhadas, continuam a alimentar posições que se vão manifestando no espaço público. É, por isso, um livro essencial.
Se é verdade que o nosso passado deve ser melhor estudado e pensado, já agora, doa a quem doer, na escala das atrocidades intelectuais talvez o nosso eterno atraso científico nos tenha evitado contribuir para essa mistificação pseudo-científica em torno das raças, onde pulularam ingleses e norte-americanos, mostrando como o debate científico serviu e serve as intenções e projetos políticos mais inconfessados.
Entre o abundante material referido e tratado neste livro, chamou-me a atenção as quatro páginas dedicadas a Louis Agassiz (1807-1873). Este suiço de nascimento foi um eminente zoólogo, geólogo e historiador natural que estudou em Zurique, Heidelberga e Munique, trabalhou na Universidade de Neuchâtel e, em 1846, mudou-se para os Estados Unidos onde se tornou professor de zoologia e geologia em Harvard[2].
Ora, entre Abril de 1865 e Agosto de 1866, Agassiz participou numa expedição ao Brasil e que contou com jovens estudiosos como, por exemplo, William James, o futuro psicólogo e filósofo e cuja obra ficará internacionalmente conhecida.
Durante a expedição, Agassiz foi registando várias observações. Algumas não deixarão de, eventualmente, melindrar o nosso sentimento mais nacionalista. Assim, Francisco Bethencourt dá-nos conta de que Agassiz defendia que «em inteligência, os negros livres estão à altura dos brasileiros e dos portugueses», que transmitiam «o espectáculo único de uma raça superior a ser influenciada por outra mais baixa, de uma classe educada a adoptar os hábitos e a descer ao nível dos selvagens»[3]. Isso mesmo, os portugueses teriam descido na escala das raças (no pressuposto meramente ideológico de que existe essa escala) e, vítimas da mestiçagem, fomentado esse contacto reprovável entre raças, teriam contribuído para o desaparecimento duma pureza que se dissolveria com as boas qualidades físicas e morais que a acompanhavam. Para Agassiz, citado por Bethencourt, os mestiços eram tão repugnantes como cães rafeiros!
Porém, o que pretendia Agassiz?
Nada mais que avisar que «o Brasil era um bom exemplo do tipo de sociedade de raça mista que os Estados Unidos deveriam evitar»[4]. Por outro lado, o autor enquadra a posição de Agassiz no contexto político dos Estados Unidos da altura: a derrota da Confederação e a vitória do abolicionismo[5]. Mas nem tudo estava perdido para os defensores do esclavagismo e da supremacia dos brancos: até à década de 1960 manter-se-ia “um desenvolvimento activamente político da teoria das raças a favor das políticas sulistas de exclusão, segregação e discriminação […] sob o olhar impávido dos pragmáticos brancos nortistas que partilhavam os mesmos preconceitos raciais básicos”[6]. É que o problema não tinha apenas a ver com uma discutível teoria das raças, mas com o modo de produção capitalista. E este estava (e está) para durar.
Francisco Bethencourt, Racismos – das Cruzadas ao Século XX, Lisboa, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2015, 582 pp.
[1] Francisco Bethencourt, Racismos – das Cruzadas ao Século XX, Lisboa, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2015, 582 pp.
[2] Sobre a obra de Agassiz, cf. O racismo de Louis Agassiz.
[3] Op. cit. p. 387.
[4] Ibid.
[5] Op. cit., p. 388.
[6] Ibid.