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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Transmissão de estabelecimentos: um entendimento limitado

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A notícia de que a esquerda parlamentar se havia entendido para alterar as normas do Código de Trabalho (CT) sobre “transmissão de empresa ou estabelecimento” suscitou esperanças de convergência em relação a outros aspectos da legislação laboral. Terão fundamento? Não parece.A matéria sobre a qual incidiu o entendimento não era, à partida, controversa. Uma entidade empregadora pode mudar livremente de titulares  sem que tal altere as relações contratais estabelecidas entre ela e os seus empregados. Mas se a  entidade empregadora opta por transmitir (geralmente sob a forma de venda) uma parte do seu negócio a outra entidade, com a titularidade dos estabelecimentos e dos instrumentos de trabalho, a lei prevê que os contratos de trabalho transitem para a entidade adquirente, sem alteração das condições contratuais. Por “lei“ leia-se actualmente o Código do Trabalho (CT), que aliás reflecte nesta parte orientações consensualizadas a nível europeu, e que são de modo geral vistas como positivas e protectoras dos direitos dos trabalhadores.

Este quadro legal, aliás anterior à publicação do CT, não só facilita a reorientação da actividade das empresas sem necessidade de prévia reestruturação / cisão em várias  sociedades e posterior alienação, mas pode permitir ultrapassar  situações difíceis, e preservar postos de trabalho tanto na actividade económica que continue a ser exercida como na actividade transmitida a outros interessados. O incentivo para estes consiste na aquisição de uma actividade sem outras responsabilidades que não as directamente emergentes da actividade laboral, sendo estas facilmente determináveis, o que poupa esforços de “due dilligence” sempre morosos e sujeição a contingências fiscais.

Tive ocasião de, enquanto conselheiro técnico do Ministro das Finanças António de Sousa Franco para a cooperação interdepartamental no domínio da recuperação de empresas / reestruturação empresarial, apoiar, sobretudo no ano de 1998 (transição do QUARESD do Ministro da Economia Augusto Mateus para o SIRME do seu sucessor Pina Moura), a realização de várias tentativas, algumas delas bem sucedidas, de transmissão de estabelecimentos em processo judicial de recuperação ou de falência ou mesmo em processo de execução fiscal. As Finanças posicionaram-se na altura a favor desta via, por um lado para desfazer os frequentes “racketts” entre empresas devedoras e sindicatos dos tempos do primeiro Governo do timorato António Guterres, por outro para desbloquear o terreno para os processos de reversão contra responsáveis subsidiários, mas é de ter presente que, tanto então como agora, não basta aproveitar as possibilidades do quadro legal para conseguir uma transmissão rápida. Nos casos da ex-Triumph e da Ricón, por exemplo, os estabelecimentos mantiveram a sua capacidade operacional mas não surgiram antes da insolvência compradores que os pudessem manter em laboração e reorientar para novos mercados.

O caso PT / Altice veio a perturbar o relativo consenso quanto à bondade do instrumento “transmissão de estabelecimento” por ter começado a ser aí utilizado como forma disse-se abusiva, se não mesmo fraudulenta, de redução de emprego e de regalias. Diga-se que a paz social vigente durante muitos anos na PT foi conseguida à custa de práticas laborais que permitiram aposentar / reformar antecipadamente muitos trabalhadores e “encostar” outros, sem despedimento, pelo que aos “raiders” que a adquiriram  pareceu natural “investir” na redução de efectivos  como forma de reduzir custos. Mas o natural alarme gerado entre o pessoal e as estruturas sindicais passou a princípio para a opinião pública embrulhado em afirmações  infundadas, como a de que a transmissão de estabelecimento só permitia manter as condições do contrato de trabalho durante um ano.

A sequência dos acontecimentos veio a mostrar que a Autoridade para Condições do Trabalho tinha pouca possibilidade de intervenção, mas o cenário de introdução de alterações ao Código do Trabalho só avançou após muitas hesitações do Partido Socialista, traduzindo-se no essencial:

  • numa reescrita quase integral do anteriormente legislado, por forma a confirmar a manutenção de direitos e a afastar interpretações não consentâneas com os objectivos do normativo;
  • na ampliação dos mecanismos de informação e auscultação dos trabalhadores e de intervenção da inspecção do trabalho;
  • na criação da possibilidade de oposição, por parte dos trabalhadores individualmente considerados, à transmissão do contrato de trabalho.

Esta última previsão legal não deixa de apresentar alguns riscos para os intervenientes, pois que se uma oposição generalizada fará malograr a transmissão por pôr em causa o seu fundamento económico, a oposição de apenas alguns trabalhadores, não inviabilizando a operação, poderá acabar por dar origem à cessação dos respectivos contratos de trabalho com a entidade empregadora, o que aliás pode ocorrer – como ficou legislado – por iniciativa do próprio opositor, com direito a compensação. É de exigir pragmatismo na condução dos processos de transmissão que, ainda mais do que anteriormente, e aliás como todos os processos de reestruturação empresarial, têm de ser bem geridos.

Estando o Partido Socialista, co-responsável histórico pelas estratégias de gestão que moldaram a PT, em franca oposição com a Altice e o cenário de aquisição da TVI por parte do respectivo grupo, e tendo a ofensiva laboral da administração posto em causa também a posição de sindicatos com que tem ligações, só é de admirar que a convergência legislativa parlamentar não tenha ocorrido mais cedo. Contudo, se uma intervenção tão limitada pareceu melindrosa, com muito mais razão estará bloqueada a intenção de por via parlamentar se vir a pôr em causa as “conquistas da contra-revolução”, isto é, o programa legislativo cuja concretização foi imputada à  troika.

Contudo, as garantias não são absolutas: num debate que teve lugar em 8 de Fevereiro último sobre as alterações ao regime de transmissão de estabelecimentos Joaquim Dionísio, advogado e ex-dirigente da CGTP alertou para uma sentença comunitária que não reconheceu um determinado processo como de transmissão de estabelecimento por não estar envolvida a transmissão de instrumentos de trabalho.
Conforme ficou expresso no Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro, que alterou o Código então aplicável (CPEREF).
O que a lei estipulava era sim que o transmitente respondia solidariamente pelas obrigações vencidas até à data da transmissão, durante o ano subsequente a esta, o que aliás era coerente com o prazo geral admitido para, após a cessação da relação de trabalho com uma entidade empregadora, reclamar créditos laborais. Tal estipulação mantém-se aliás no novo texto votado pelo parlamento, alargando-se para dois anos o período em que o transmitente responde pelas obrigações vencidas até à data da transmissão.

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