Alguns dirão que Marielle Franco foi provavelmente assassinada por milicianos ligados à PM do Rio de Janeiro, já que a combativa vereadora, mulher negra da favela da Maré, vinha denunciando os crimes desses grupos contra a população favelada da “cidade maravilhosa” e a intervenção militar imposta pelo governo federal.Engano. Esses grupos foram, no máximo, os executores de Marielle. Foram apenas aqueles que dispararam 9 vezes contra a sua cabeça, numa execução bárbara, que demonstra ousadia e certeza de impunidade.
Mas o verdadeiro assassino é aquele que criou o clima político propício a essa execução premeditada. É aquele que realiza uma absurda intervenção militar no Rio de Janeiro, a qual naturaliza a “guetificação” da população favelada e que se dedica, entre outras coisas, a identificar com fotos essa população, reproduzindo o estigma escravocrata que pesa historicamente sobre ela. É aquele que catapultou o fascismo tupiniquim a segundo favorito nas pesquisas eleitorais. É aquele que permitiu que o ódio político, social e racial se propagasse como uma peste em nossa sociedade. É aquele que vem disparando tiros no coração da nossa democracia e nos direitos humanos, desde que assumiu o poder. É aquele que, todos os dias, dispara contra a Constituição de 1988 e seu pacto democrático e social.
Marielle foi assassinada pelo golpe.
Foi o golpe que chocou o “ovo da serpente” dos preconceitos e da intolerância. Foi o golpe que abriu a porteira para o fascismo brasileiro e para a crescente criminalização dos movimentos populares, dos negros, dos trabalhadores e de todos aqueles que assumem posições em favor dos direitos humanos dos excluídos.
Foi o golpe que cassou a soberania popular, tornando o Brasil, de novo, uma república bananeira, na qual os direitos e garantias individuais valem pouco. Foi o golpe que criou um Estado de exceção, que “relativiza” direitos políticos e sociais. Foi o golpe, combinado com a Lava Jato, que criminalizou todo o sistema de representação política. Marielle, lembre-se, era parlamentar. Era política. Política de um partido de esquerda, representante autêntica das populações historicamente marginalizadas.
Alguém aí acha que Marielle teria sido assassinada se fosse homem branco, morado do Leblon e político de algum partido conservador? Claro que não, mesmo que fizesse críticas ao sistema de segurança do Rio de Janeiro.
O assassinato de Marielle, embora trágico e chocante, é crônica de uma morte anunciada. Desde que os golpistas tomaram o poder, massacres e assassinatos de lideranças populares, camponesas e indígenas voltaram a se tornar rotina no Brasil. Desde 2016, foram 25 lideranças populares assassinadas. Marielle é apenas a vigésima sexta. O genocídio de jovens negros voltou a se agravar. A solução autoritária para os nossos graves problemas sociais voltou a se impor. A eliminação política ou física daqueles que lutam por igualdade e pela afirmação de direitos voltou a ser crescentemente naturalizada. No mesmo dia em que mataram Marielle, no Rio, em São Paulo a polícia agredia barbaramente professores que protestavam contra a cassação de seus direitos. E tudo isso acontece com a complacência de uma justiça grosseiramente partidarizada.
Com o golpe, o Brasil virou uma terra de ninguém, um faroeste político. Com o golpe, era apenas uma questão de tempo até que surgissem executores para disparar tiros contra a cabeça de nossas “marielles”. Parafraseando Dostoiévski, se a democracia não existe mais, ou foi “flexibilizada”, tudo é permitido. Até matar. Se for mulher, negra e pobre é fácil. Com o golpe, os executores de “marielles” foram empoderados.
Mataram fisicamente Marielle. Tentam matar politicamente Lula. Tudo faz parte do mesmo processo fascistoide de eliminação das diferenças, de execução das divergências, de marginalização das classes populares e daqueles que se batem por elas. Nas redes sociais plenas de ódio golpista, muitos vomitam sua aprovação ao assassinato de Marielle. Amanhã, serão os mesmos que aplaudirão uma eventual prisão de Lula.
Agora, o golpe que matou nossa democracia diz que vai investigar a fundo o assassinato de Marielle, que tende a se tornar um grande escândalo internacional. Provavelmente vão prender alguns “bagrinhos”, os suspeitos de sempre.
Mas, se quiserem procurar o responsável último pelo assassinato de Marielle, não precisa ir muito longe. Basta procurar o espelho mais próximo.
Por Marcelo Zero, Sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado | Texto original em português do Brasil
Exclusivo Editorial Brasil247 / Tornado