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Domingo, Dezembro 22, 2024

Dois casos de verdades marteladas

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

O caso Passos Coelho e o caso Feliciano Barreiras Duarte são dois exemplos de enviesamento ou manipulação da verdade, de formas diferentes. O primeiro ilustra a sobrevalorização do formal sobre o essencial. O segundo, a ligeireza, pelo menos, com que se divulga informação própria relevante.

  1. O caso Passos Coelho

Já toda a gente sabe que Pedro Passos Coelho (PPC) foi contratado como professor catedrático convidado pelo ISCSP da Universidade de Lisboa (da antiga Universidade Técnica) para lecionar cursos de pós-graduação (mestrado e doutoramento) em Administração Pública e em Economia.

Com os dados que tenho, discordo, mas por razões diferentes das que se tem visto.

Muito se tem escrito, contra ou a favor, mas sempre abordando questões formais a esconder, mais ou menos, atitudes de simpatia ou antipatia. Ora o que está em causa é a substância do caso, não a forma. Não é novidade esta abordagem, muito comum na nossa cultura de esquematismos simplistas, de codificações rígidas, de preguiça mental.

Lembra-me o caso da licenciatura de Sócrates, cheia da irregularidades e procedimentos antiéticos, mas sempre condenada por pequenas questões formais, como o das notas ao domingo. Nem mesmo um jornal que preveni expressamente quanto ao erro deixou de confundir o lançar notas ao domingo com o fazer exames ao domingo. Lançar a nota é um procedimento administrativo que hoje, regra geral, é feito em casa e no computador. Tem um prazo após o exame mas não é necessário ser no dia dele. Como professor, quantas vezes lancei notas (ou corrigi exames) ao domingo, dia calmo em casa para esse tipo de afazeres.

Também no caso PPC praticamente só se tem falado formalmente, e pena é que muitas vezes por parte de universitários. Compreendo muitos destes, magoados na sua situação de professores convidados em regime precário quando, de facto, desempenham funções de carreira, mas devia reinar a isenção na sua apreciação do caso.

O que mais se tem discutido é a qualificação formal de PPC, as suas funções, a sua categoria, etc., tudo sempre referido à carreira docente universitária e seu estatuto (ECDU). Substancialmente, isto não faz sentido. Professor convidado é um cargo exercido à margem da carreira, em condições de nivelamento qualitativo e remuneratório contratadas e que pode ser atribuído a pessoas “de reconhecida competência científica, pedagógica ou profissional, cuja colaboração se revista de interesse e necessidade inegáveis para a instituição de ensino superior em causa”. E é tudo. Não há exigências de grau académico, de antiguidade, de condições de acesso a uma categoria.

Da mesma forma, a questão das funções, abordada no citado abaixo-assinado. Ao contrário do se faz em qualquer sistema universitário em que se saiba avaliar a qualidade sem necessidade de a parametrizar metricamente, o ECDU não estipula, para progressão na carreira, quais as competências ou qualidade curricular que a devem determinar. Fá-lo por via indireta, definindo burocraticamente (a prática é muito mais complexa) as funções correspondentes a cada categoria.

Não se esqueça também que a decisão não compete ao diretor, porventura permeável a pressões políticas, como se tem dito, mas a um órgão académico, o conselho científico, mais difícil, embora não impossível, de ser influenciado.

Ora isto é de difícil aplicação em casos em que o convite é feita com um objetivo muito específico, o de aproveitar uma experiência particular de exercício profissional. Faz-se em todo o mundo, e até com portugueses, como Jorge de Sena ou José Rodrigues Miguéis (e alguma universidade desdenharia Saramago?). Também cá Joel Serrão ou Aurélio Quintanilha não poderiam ser professores catedráticos senão como contratados. E um dos grandes médicos portugueses, Corino de Andrade foi professor catedrático convidado sem ter doutoramento.

É indiscutível que a experiência “profissional” de um ex-primeiro ministro é um ativo para uma universidade. A questão é em que condições. A discordância que manifestei atrás tem a ver com isto. Aceitaria, vendo que razões teria o conselho científico, a contratação de PPC como catedrático convidado (se se quer um ex-primeiro ministro não se contrata como professor auxiliar! questão de decoro e bom senso) para lecionar aulas de licenciatura, ou para um curso livre, ou para seminários, ou para ciclos de conferências. Tudo isto é prática geral. A questão é de ser para ensino de mestrado ou de doutoramento, que têm uma grande componente de orientação de investigação, para teses. A meu ver, é essencialmente esta capacidade que notoriamente falta a PPC.

Fora isto, não deixo que passe à frente do rigor académico considerações políticas, a saber se PPC foi ou não um bom político. Eu julgo que foi péssimo, mas também há professores que foram transitoriamente péssimos governantes e não deixaram por isso de regressar ao ensino.

A verdade na discussão deste caso, em termos de rigor intelectual, tem sofrido marteladas.

  1. O caso Feliciano Barreiras Duarte

Vou ser mais breve, que o caso, tristemente, não justifica muita cera. Feliciano Barreiras Duarte (FBD) é mais um na crescente lista de publicação de currículos com falsidades. Não é só cá, porque até o anterior presidente do Eurogrupo caiu nisso. A qualificação académica parece ser para os políticos o que antes era a comenda para os industriais de poucas letras. Penacho (que não é o mesmo que “panache”…).

Interessante é a desfaçatez com que se encara a leviandade – quero crer que é isto – de quem não cuida de verificar os dados curriculares ou declarações que publica. Neste caso, tanto FBD como a sua possível orientadora, Prof. Deolinda Adão.

Escrevi em nota no Facebook que me parecia credível a afirmação desta de que a célebre carta da U. Califórnia em Berkeley era forjada. Está escrita em português, o título devia ser “visiting junior scholar”, a diretora não tem competência para emitir certificados em nome da universidade, a referência a Universidade Pública é espúria.

Fico agora surpreendido com a última declaração da professora, em que parece dizer que afinal a carta é dela mas que não tem o significado que FBD lhe atribui. Alguém mente descaradamente. Ou é um universitário português – a propósito, que categoria de professor tem na Lusófona este licenciado? – e secretário geral de um partido, ou é uma diretora de um instituto de uma das melhores universidades americanas. Seja qual for a verdade, tem sofrido marteladas.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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