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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A sombra e a realidade

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O regime iraniano, tal e qual como o Nazi, não prescinde de utilizar verdadeiros ou pretensos judeus para legitimar a sua política assassina, pressionando-os comprando-os ou mesmo tão só dando-lhes a perspectiva de serem os últimos a morrer.

  1. A galeria dos horrores

Publiquei no Tornado de 26 de Dezembro de 2017 em “o novo escritório europeu de Anne Singleton” um artigo sobre a instalação da mais reconhecida e antiga agente estrangeira dos serviços secretos iranianos, Anne Singleton, no gabinete da Dr.ª Ana Gomes no Parlamento Europeu, artigo baseado na fotografia e na informação que Anne Singleton tinha feito publicar no seu site.

Nos meses que se sucederam desde essa data, resolveu a Dr.ª Gomes publicar ela mesma as fotografias das suas viagens a Teerão – com encontros exclusivos com elementos importantes do aparelho repressivo – e a de vários destacados colaboradores do regime iraniano que têm passado desde então pelo seu gabinete: uma verdadeira galeria dos horrores.

No dia 19 de Março, acabou contudo por se exceder, na fotografia que fez publicar no tweeted, que acima reproduzo, e que a retrata lado a lado com o autointitulado rabi Moyshe Friedman. Trata-se de alguém que ascendeu à notoriedade com o selo de pseudo-judaísmo que emprestou à conferência internacional de Teerão de 2006 para rever o holocausto, e que se tornou assim um dos símbolos mais destacados do negacionismo teocrático iraniano.

O regime iraniano, tal e qual como o Nazi, não prescinde de utilizar verdadeiros ou pretensos judeus para legitimar a sua política assassina, pressionando-os comprando-os ou mesmo tão só dando-lhes a perspectiva de serem os últimos a morrer.

Por exemplo, partes do ghetto transformado em campo de concentração de Terezin, nos Sudetas, foram utilizados por Hitler para mostrar à Cruz Vermelha em 1944 como os judeus eram bem tratados, usando para isso uma pequena parte da comunidade a quem fez crer que poderia vir a ser salva se colaborasse.

A propaganda negacionista ou revisionista do holocausto, a de Moyshe Friedman como qualquer outra, visa branquear o que se passou, diminuindo o número de vítimas, a barbaridade dos métodos e, sobretudo, a motivação racial, pelo que lhe é essencial manipular judeus reais ou presumidos.

Só assim se pode compreender que a Dr.ª Ana Gomes, ela mesma, se tenha resolvido proclamar nas suas mensagens antijudaicas como tendo “orgulho nas suas raízes semíticas”. Em cinco anos que trabalhei lado a lado com ela, não tenho memória de a ouvir dizer tal coisa. Se ela o diz baseada apenas em estatísticas (é estatisticamente difícil a um português não ter raízes semíticas) ou se isso corresponde a algo mais de concreto, é para o caso irrelevante: a lógica é sempre a mesma que a utilizada pelo seu colega Moyshe Friedman: esconder-se atrás do judaísmo para mais facilmente fazer passar o antissemitismo.

É o que na gíria da desinformação se chama o 80-20; dizer 80% das palavras aparentemente alheias ou mesmo de sentido diverso do que se pretende transmitir, para de seguida fazer passar de contrabando a mensagem pretendida em 20% das palavras restantes.

A Dr.ª Ana Gomes, aqui, excedeu-se, porque em boa parte da Europa – a começar pela França e Alemanha – o negacionismo é crime, e ela viu-se compungida a retirar esta fotografia da sua galeria.

A Dr.ª Ana Gomes conseguiu aliás um feito raro que foi unir praticamente toda a comunidade judaica numa declaração comum ao Parlamento Europeu pedindo que este se distanciasse das suas acções.

  1. A campanha pelo massacre dos dissidentes iranianos

Se há um ponto em que a Dr.ª Ana Gomes diz a verdade, é que não a move qualquer sentimento especial contra os judeus. Para a Dr.ª Ana Gomes, isso de sentimentos ou moral, é uma coisa para católicos, que lhe passa ao lado. Ela faz a campanha contra Israel da mesma forma que faz qualquer outra que interesse ao regime iraniano.

Quando o Irão declarou uma fatwa contra Angola por este país recusar autorização à instalação de novas mesquitas em seu território, lá tivemos a Dr.ª Ana Gomes – a quem até essa data não se conheciam quaisquer acções contra o país – multiplicar-se em iniciativas a explicar que Angola era um país terrível.

Quando o Bahrain desmontou e prendeu as células terroristas promovidas pelo regime iraniano, lá tivemos a Dr.ª Ana Gomes na campanha contra o Bahrain que a levou mesmo a ser expulsa do país.

Quando o Irão aponta baterias contra a Arábia Saudita, aí a temos, a descobrir e a lançar campanhas contra a Arábia Saudita.

Aquilo que tem sido mais permanente na sua actuação é contudo a diabolização da oposição iraniana e muito em particular o maior, mais importante e mais nacional dos movimentos de oposição, o Conselho Nacional da Resistência Iraniana (CNRI).

Com a total desfaçatez e ausência de escrúpulos com que acampou em Ponta Delgada em 2009 para me acusar em Tribunal de ser “amigo de terroristas” – com o peso que lhe dava o facto de ser minha colega no grupo socialista no Parlamento Europeu – a Dr.ª Ana Gomes tem-se desdobrado em todo o tipo de acções para acusar o CNRI de terrorista.

Quando os EUA deixaram o Iraque em 2009 e os campos formados por estes refugiados ficaram à mercê das autoridades pró-iranianas no Iraque que iniciou as mais diversas acções para os assassinar e levar os sobreviventes para o Irão, tendo morto algumas centenas e incapacitado ainda mais.

E a verdade pouco conhecida, é que isso acabou por não acontecer graças à acção de António Guterres – então alto-comissário para os refugiados das Nações Unidas – pessoa por quem eu guardo uma ilimitada consideração e que faz jus mais do que qualquer outra pessoa à “moral católica”.

Mas não foi porque a Dr.ª Ana Gomes tivesse poupado esforços na colaboração com as agências do regime iraniano encarregadas de os diabolizar e tratar como “terroristas”, e que tinha como objectivo central levar o ocidente a olhar para o outro lado enquanto estes eram massacrados.

  1. Prevenção contra estratégias de desinformação

As estratégias de desinformação são provavelmente tão antigas quanto a comunicação humana. Na verdade, basta-nos olhar para o reino animal, para as mães que para proteger os filhos fazem barulho do lado oposto onde eles se escondem para enganar os predadores, para vermos como a desinformação é algo de primitivo e generalizado na natureza.

Pretender que a desinformação nasceu com as modernas tele-redes sociais é algo que não tem qualquer sentido, e ainda menos tem sentido sugerir que a comunicação social tradicional é mais imune à desinformação ou tem qualquer valor moral mais elevado do que elas. A campanha desencadeada pela velha comunicação social contra a concorrência do Facebook com o argumento de que este não é fiável é patética e não merece qualquer credibilidade.

Não há receitas infalíveis contra a desinformação, e qualquer estratégia tem que contar com uma razoável dose de bom senso, capacidade de resistir às lógicas conspirativas e, acima de tudo, discernimento e conhecimento daquilo com que estamos a lidar. E por vezes, aprende-se batendo com a cabeça na parede, método que não recomendo a ninguém mas que por vezes é o único disponível.

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