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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A omertà e o saque bancário em Portugal

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A pedra angular da arte de produzir lucros privados à conta de prejuízos públicos, que a literatura anglo-saxónica designa de “crony capitalism”, e que eu traduzo para a realidade portuguesa como “complexo político-financeiro”, …

… consiste no conluio entre Governo, partidos, banqueiros, empresários e comunicação social que se manifesta, por exemplo, em metade dos ex-ministros portugueses transitarem do Governo para a banca ou ainda para negócios financeiros de “parceria público-privada” (PPP) tipo Lusoponte, de que Portugal é o líder europeu destacado.

  1. O complexo político-financeiro

A pedra angular da arte de produzir lucros privados à conta de prejuízos públicos, que a literatura anglo-saxónica designa de “crony capitalism”, e que eu traduzo para a realidade portuguesa como “complexo político-financeiro”, consiste no conluio entre Governo, partidos, banqueiros, empresários e comunicação social que se manifesta, por exemplo, em metade dos ex-ministros portugueses transitarem do Governo para a banca ou ainda para negócios financeiros de “parceria público-privada” (PPP) tipo Lusoponte, de que Portugal é o líder europeu destacado.

A “contabilidade criativa” e a “engenharia financeira” são as duas disciplinas económicas mais importantes na transformação do enriquecimento privado em dívida pública, para as quais são igualmente importantes as incestuosas, opacas e confusas leis e práticas de supervisão bancária, de contas públicas, investigação criminal, justiça e, claro, a colaboração da comunicação social.

Nada disto é exclusivamente português, embora Portugal se destaque nesta matéria. Alguma da profusão legislativa europeia supostamente destinada ao controlo das finanças públicas destina-se antes a disfarçar esse vaso comunicante público-privado através, por exemplo, de um conceito de “défice estrutural”, com relevância teórica, mas que na prática serve apenas para fazer desaparecer os biliões dados à banca das contas públicas dos números publicitados pela comunicação social.

Nos quinze dias que passaram, a comunicação social portuguesa foi pródiga na arte de lançar confusão sobre esta matéria. Os mesmos publicistas que martelaram o défice português de 2014 de 7,2% para 4,5% – operação essencial, para a campanha das legislativas de 2015 – fizeram fogo sobre o actual Governo por querer que o défice de 3% não considerasse subvenções ligadas à CGD e fosse por isso reduzido a 0.9%. O que poderá ter passado despercebido é que assim se tornou mais nebulosa a nova subvenção dada à banca, desta feita ao chamado “Novo Banco”.

  1. A falência do BES precipitada pelo Banco Central Europeu

A fim de fazer face à falência do BES, o governo invocou uma iniciativa europeia, enquadrada num pacote legislativo pomposamente denominado de “união bancária”, que prevê a utilização do Fundo de Garantia de Depósitos e a criação de um “Fundo de Resolução”.

A directiva 2014/59/UE, de centenas de páginas, e o decreto 114/A de 2014 que a transpõe, serviram para dar um ar de seriedade à intervenção sobre o BES, mas são incompreensíveis quanto à questão essencial de saber como o Fundo de Resolução é financiado e chamado a completar o Fundo de Garantia para acudir a crises bancárias.

Na melhor das hipóteses, tal como vários outros fundos de garantia ou mesmo fundos de intervenção turística, por exemplo, eles serão financiados no futuro pela actividade do sector. Que eu saiba, ninguém se lembrou de dizer até hoje que os fundos de turismo são dos hotéis, ou os do seguro automóveis são das seguradoras, pelo que é incompreensível que a comunicação social nos queira convencer de que o fundo de resolução é de direito público mas financiado pelos bancos.

É em todo o caso uma discussão bizantina, porque um fundo acabado de ser criado por um decreto não pode ter forma de financiar uma operação de salvamento de um banco. O fundo de resolução é feito de 100% de contabilidade criativa e engenharia contabilística e a exagerada atenção que lhe é dada pela comunicação social apenas serve para confundir a simples realidade de que se trata de transferir fundos públicos para pagar negócios privados.

Como na altura foi registado em acta do Banco Central Europeu e divulgado por alguma imprensa, a falência do BES foi precipitada pelo BCE que exigiu ao Banco de Portugal a devolução em três dias de 10.000 milhões de euros disponibilizados ao BES no âmbito das operações de liquidez.

Curiosamente, três anos e meio depois, o primeiro responsável pelo BES post-intervenção, Vítor Bento, refere o mesmo número como custo da operação nas páginas do “Observador“.

A forma como o Governo e o Banco de Portugal se concertaram para cobrir o valor da factura, tal como o valor dessa factura, continuam a ser tema de mistério, mas é óbvio que em qualquer caso quem pagou e vai continuar a pagar a mesma são os portugueses, e não os bancos.

  1. A factura do alinhamento político irano-venezuelano

Depois de um processo de privatização em que, como é tradicional, os lucros foram privatizados mas os prejuízos ficaram a cargo do erário público, o presidente do ‘Novo Banco’ vem anunciar em conferência de imprensa um novo saque de várias centenas de milhões de euros aos fundos públicos, não se tendo conseguido ouvir da parte do Governo qualquer explicação com o mínimo de sentido do que se passa.

Da reportagem feita pelo “Observador” destaco o seguinte período:

Questionado sobre porque só agora foram registadas nas contas perdas tão elevadas, António Ramalho explicou que a maior fatia destas perdas foi reconhecida em operações de crédito no estrangeiro, sobretudo na área de obras públicas e project finance, que tinham sido financiadas pelo antigo Banco Espírito Santo.

António Ramalho escusou-se a dar muitos pormenores sobre em que países estavam esses créditos, limitando-se a enumerar “países árabes, Brasil e outros países… que são… outros países”

Alguns factos recentes poderão servir para explicar a omertà sobre os países com que se fizeram os negócios onde se desbarataram milhares de milhões de euros do erário público.

A 20 de Junho de 2017, as autoridades judiciais portuguesas lançam uma operação de investigação em Madrid sobre o paradeiro de cerca de 5 mil milhões de euros de contas dos petróleos de Venezuela desaparecidos do BES pouco antes da intervenção. É uma operação largamente publicitada pela imprensa espanhola e internacional mas silenciada em Portugal a que eu dedico um artigo no “Tornado” (Dinheiros públicos e opinião pública em Portugal).

A 18 de Fevereiro de 2018, citando uma sentença judicial, o Correio da Manhã afirma que o BES terá pago a personalidades do regime venezuelano 100 milhões de Euros. Se foram pagos 100 milhões só em luvas aos dirigentes venezuelanos, qual terá sido o montante total da operação?

Apesar de ter existido uma comissão de inquérito parlamentar sobre a falência do BES; apesar das múltiplas investigações judiciais sobre o tema, o pouco que se sabe resulta apenas das operações jurídico-mediáticas destinadas a transformar José Sócrates no bode expiatório, com o cuidado de preservar, tanto quanto possível, os mecanismos sistémicos do “complexo político-financeiro”.

Por que razão não se faz luz sobre os acordos político-financeiros que resultaram do negócio dos submarinos e dos quais, a falência do BES é um dos resultados mais pesados?

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